por Paulo Silas Filho

Assim como na literatura, o narrador jurídico, no âmbito do Tribunal do Júri, reproduz a fala daquele sobre quem está a dizer. Há também o espaço cedido aos próprios personagens da história para que possam reproduzir as suas próprias falas, onde o discurso direto entra, em tese, em cena. Mas, ainda assim, os próprios personagens estão a narrar episódios passados – diz-se algo “agora” sobre o “antes”, que já passou. Nesse sentido, o discurso direto soa estranho ao considerar o modo com o qual ele é reproduzido pelas pessoas que participam de toda aquela dinâmica ritualística que é o Tribunal do Júri. A coisa “não encaixa”. Daí que os verdadeiros protagonistas acabam sendo aqueles que alguns chama de “atores jurídicos”. Acusação e defesa é quem ganham o destaque em cena, reproduzindo, fielmente ou não, tudo aquilo que está nos autos do processo – ou pelo menos assim se espera.
A forma de se narrar o caso possui uma significativa importância na sessão do Júri. Para além de todo o jargão técnico imperante nas peças processuais existentes até então, o palco do Júri comporta uma amplitude muito maior de se dizer sobe os fatos. Assim, “o modo como o argumento será construído fará a diferença ao mapa cognitivo do processo” (ROSA, 2017, p. 17) – principalmente no Tribunal do Júri. É que ali, no ambiente em que presentes estão os sete leigos que decidirão o futuro do acusado, instaura-se uma aura própria que permite uma condução peculiar da explicação sobre o caso. Sobre um mesmo fato, acusação e defesa divergem sobre a interpretação que deve ser atribuída ao ocorrido – isso quando não são os próprios fatos que são controversos (um homicídio sem corpo, por exemplo), ou seja, “fatos e versões fundem-se na narrativa de quem afirma e diluem na fala de quem contesta” (GOGOY, 2008, p. 83).
Ezilda Melo destaca justamente a dinâmica presente no Tribunal do Júri para a qual aqui se chama a atenção:
No discurso do Tribunal do Júri, o orador é tomado pela palavra e conduzido por ela a lugares distantes. O orador gesticula, silencia, usa rases de efeito. A palavra o possui, o toma, o leva como se tivesse vida própria, ou exercesse o controle sozinha. O discurso é dito em forma de começo, meio e fim. Tal qual uma música, tem ritmo, letra, entonação, interpretação, modulação, acordes, cadências, tonalidades, escalas, melodias, notas, vozes. (MELO, 2016, p. 33)
Cientes disso, ou pelo menos assim devendo estar, as partes que ocupam os papeis de acusação e de defesa trabalham com ênfase na articulação a respeito de como melhor contar os fatos. O discurso não pode estar isolado, pois deve ao menos soar crível aos jurados. Tal qual num romance literário, a história deve “casar”, fazer sentido, estar amparada num elo que ligue todos os pontos do caso – pelo menos sob a ótica defendida por cada parte. Há subterfúgios, estratégias, táticas, jeitos e formas de melhor se construir a defesa de um ponto de vista num dado caso. Cada parte assume aquela que melhor lhe aprouver. Seja como for, o efeito de prender a atenção dos jurados para aquilo que se expõe é o que se busca de cada lado.
O efeito de causar, de convencer, de prender a atenção a ponto inclusive de se fazer esquecer ou simplesmente ignorar outros detalhes que, caso enfrentados fossem, poderiam trazer problemas ao argumento defendido, é o que se almeja. Veja-se que, para muitos, a perspectiva de Bentinho sobre os fatores que envolvem Capitu é suficiente para condená-la pela suposta traição, mesmo não se oportunizando a possuidora dos olhos de cigana o contraditório que lhe seria devido. A forma com a qual Bentinho narra os fatos convence muitos leitores de que a desconfiança do protagonista possui amparo na realidade. O seu modo de contar a história é suficiente para convencer, fornecendo na própria fala elementos aptos a dar credibilidade ao ponto de vista defendido.
No Tribunal do Júri, essa articulação presente na narrativa situada na retórica proferida perante os julgadores é, como já dito, bastante significativa, principalmente ao se levar em conta que os jurados são livres para decidirem segundo suas próprias convicções. Nesse sentido, Adriano Bretas vai dizer que “o júri promove a tão esperada dinâmica do direito, oxigenando a jurisprudência, descortinando novos horizontes, até então não cogitados pelos juízes togados, enfim, trazendo uma solução que pode ter sido olvidada pela justiça togada” (BRETAS, 2010, p. 40).
Assim como o Direito como um todo – que pode ser apontado como sendo o relato cuja narração conta a respeito de um mundo possível, de uma existência “paralela”“ (GONZÁLEZ, 2018, p. 29) -, o Júri possui o seu caráter de ficcionalidade. A partir da decisão dada pelos jurados, escreve-se um capítulo em definitivo sobre a vida do acusado – com repercussões futuras! Deste modo, não apenas na literatura a narrativa merece a devida atenção. Além do fator linguagem, presente também está, tanto no Direito quanto na Literatura, o aspecto da ficcionalidade – do qual se extrai a narrativa. “A essência da ficção é, pois, a narrativa. É a sua espinha dorsal” (COUTINHO, 2015, p. 49).
É pela narrativa que se atribuem significados. É pela narrativa que se constroem os argumentos mais ou menos plausíveis. É pela narrativa que se desconstrói a versão do lado adverso. É pela narrativa que se conta a história do caso em julgamento no Tribunal do Júri. A narrativa é o aspecto simbólico e concreto que se faz presente no discurso jurídico. A narrativa é que estabelece a interpretação que se almeja seja dada pelo corpo de jurados. Assim, “a interpretação também é um lugar de poder na esfera do discurso jurídico” (MELO, 2016, p. 33), pois é a partir dessa que se formará o entendimento conclusivo dos julgadores, do qual se estabelecerá o veredito: “o jurado absolve o acusado”?
Feito esse introito de ensaio, pertinente trazer aqui o questionamento de James Wood: “será que todos nós, de alguma maneira, somos personagens fictícios, gerados pela vida e escrito por nós mesmos?” (WOOD, 2017, p. 105). Se é assim na vida como um todo, cabe a cada um adotar uma perspectiva de interpretação a fim de buscar e estabelecer a própria resposta. No Tribunal do Júri, porém, arrisca-se a responder afirmativamente ao questionamento – todos os presentes naquele ambiente são personagens tão fictícios quanto o próprio Direito, cujo destino de cada um depende sempre da narrativa que melhor convencer e for escrita na sentença a ser dada, principalmente quando se está a falar da figura do acusado.
Os efeitos sentidos pelos personagens jurídicos: eis a concretude que no Direito se faz presente, diferenciando-o, nesse ponto, da Literatura.
REFERÊNCIAS
BRETAS, Adriano Sérgio Nunes. Estigma de Pilatos: a desconstrução do mito in dubio pro societate da pronúncia no rito do júri e a sua repercussão jurisprudencial. Curitiba: Juruá, 2010.
COUTINHO, Afrânio. Notas de Teoria Literária. 2ª Ed. Petrópolis: Vozes, 2015.
GODOY, Arnaldo Sampaio de Moraes. Direito & Literatura: ensaio de síntese teórica. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2008
GONZÁLEZ, José Calvo. Nada no direito é extraficional (escritura, ficcionalidade e relato como ars iurium). In: TRINDADE, André Karam; KARAM, Henriete (Editores). Por Dentro do Lei: direito, narrativa e ficção. 1ª Ed. Florianópolis: Tirant Lo Blach, 2018
MELO, Ezilda. Tribunal do Júri: arte, emoção e caos. 1ª Ed. Florianópolis: Empório do Direito, 2016.
ROSA, Alexandre Morais da. Teoria dos Jogos e Processo Penal: a short introduction. 2ª Ed. Florianópolis: Empório Modara, 2017
WOOD, James. Como Funciona a Ficção. São Paulo: SESI-SP Editora, 2017.
Paulo Silas Filho
Professor de Processo Penal e Criminologia – Universidade do Contestado (UnC)
Mestre em Direito (UNINTER)
Especialista em Ciências Penais, em Direito Processual Penal e em Filosofia
Advogado E-mail: paulosilasfilho@hotmail.com
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