por Paulo Ferrareze Filho

A capa do documentário “Democracia em Vertigem”, que simboliza a recente divisão do Brasil entre vermelhos e verde-amarelos, pode ajudar a responder a pergunta do título.
Dois abalos em 2013 iniciaram o terremoto. O primeiro foi a cutucada com vara curta que Dilma deu nos monstros grandes do mercado forçando os bancos a reduzir juros (coisa que sempre deixa os banqueiros putos da vida, apesar de eles já tomarem vinhos de R$ 35 mil reais…). O segundo abalo aconteceu em junho de 2013, com as manifestações e a saída da população do coma político-cidadão desde a queda de Collor. Essa população de zumbis que vegetava até Collor iniciou em 2013 uma cisão ideológica no Brasil que encontrou sua hipérbole com as eleições de 2018.
No epicentro dessa cisão, a Lava-Jato, sob o jugo de Sergio Moro, condenava Lula, retirando o mais cotado pretendente da corrida eleitoral e abrindo caminho para a vitória de Bolsonaro (aqui um parênteses necessário: o Brasil é tão desqualificado politicamente que, depois que Lula foi preso, parte dos votos dele migraram para Bolsonaro… Os cientistas políticos ainda não explicaram direito esse fenômeno. Se bem que talvez a tarefa seja melhor respondida pelos cientistas da área psi…).
Você pode amar ou odiar Moro ou Lula, mas os papos de Moro e Dallagnol no Telegram, se vistos juridicamente, não comportam dúvida. Ao cobrar novas operações do MP, ao pedir a publicação das contradições do depoimento de Lula, ao indicar testemunhas e ao blindar FHC, Moro corrompeu a lei para combater a corrupção. Com um plus psicótico: fodeu as empresas e milhares de trabalhadores que dependiam delas.
Mesmo assim, confirmada a anulação do processo de Lula, que deve acontecer se o STF ainda seguir (apenas) a lei, uma pergunta essencial deve ser formulada, para que mais um diagnóstico da falência do sistema jurídico possa ser arrolado no prontuário das causas mortis: há juiz(a) imparcial no Brasil para julgar Lula?
Imaginar que algum juiz tenha isenção para processar e julgar Lula é o mesmo que acreditar na planificação da terra: ingenuidade, mentira sincera, ilusão, resistência a novas experiências jurídicas e políticas, disparate, normapatia.
Se a crença na imparcialidade é uma evasiva da norma jurídica para esconder inevitáveis preconcepções que formam e movimentam a parafernália psíquica de um sujeito, especialmente no caso Lula, pretender um juízo imparcial é fazer uma aliança com o autoengano. Afinal, coleguinhas, vocês ainda pensam que um(a) juiz(a) passe incólume pelas trevas maniqueístas do discurso político?
Isso não significa que as conversas reveladas por Moro e Dallagnol devam passar ilesas. Elas só escancararam o que quem não é zumbi já sabia. Por isso, juristas mais ortodoxos, que ainda são maioria, pedem não só a anulação do processo como também o afastamento de Moro do Ministério. Afinal, ninguém consegue investigar com isenção o próprio chefe.
A perspectiva teórica que melhor lida com essa realidade talvez seja a Teoria dos Jogos, bem manejada entre nós por Alexandre Morais da Rosa (Processo Penal conforme a Teoria dos Jogos, EMais, 2019). A falta de precaução de Moro, considerando o contexto de um processo tão peculiar como o de Lula, o tornou tecnicamente ilegítimo para julgar. Na linguagem dos jogos, Moro, que sequer deveria atuar como jogador, “jogou” mal, na medida em que extrapolou a regra que determina a extensão de suas funções. Moro é realmente único: o único juiz da história que cavou pênalti e que acabou “pego” pelo VAR jornalístico.
Por isso merece dos juízes-chefes – se ainda existirem, ao velho estilo normativo de ser – cartão vermelho. Ao deixar pontas soltas em um processo que é cada vez mais influenciável por coisas fora do mundo jurídico, Moro, que se pensava herói, acabou se transformando em herói trágico: quanto mais foge de seu destino, mais é submetido a ele. Quem com vazamento fere, com vazamento será ferido… ecoa a voz do oráculo de Delfos pós-moderno.
Custa acreditar que juízes não tenham ficado em um dos lados depois da cisão da pangeia ideológica nacional. Se, tecnicamente, não há dúvida que os hackers cometeram crime, que o processo deve ser anulado e que Moro é um juiz com os dois pés do lado verde-amarelo, a questão, depois de anulado o julgamento, caso o STF tenha bagos e clitóris inchados para tanto, é acreditarmos que há juiz(a) que possa julgar Lula com imparcialidade. Eu digo e as entidades confirmam: não há.
Agostinho Ramalho Neto talvez tenha razão: “quando se julga alguém, é outra coisa que está em julgamento”. Quem poderá construir um VAR para o Direito?
Paulo Ferrareze Filho
Professor de Psicologia Jurídica (UNIAVAN). Psicanalista em formação. Doutor em Filosofia do Direito (UFSC).
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