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O panóptico das tecnologias

por Arnoldo Gabriel Benvenutti

AOS LIBERTINOS

Voluptuosos de todas as idades e de todos os sexos, é a vós somente que dedico esta obra; alimentai-vos de seus princípios que favorecem vossas paixões; essas paixões que horrorizam os frios e tolos moralistas, são apenas os meios que a natureza emprega para submeter os homens aos fins que se propõe. Não resistais a essas paixões deliciosas: seus órgãos são os únicos que vos devem conduzir à felicidade.

Mulheres lúbricas, que a voluptuosa Saint-Ange seja vosso modelo; segui seu exemplo, desprezando tudo quanto contraria as leis divinas do prazer, que dominaram toda sua vida. Jovens, há tanto tempo abafadas pelo liames absurdos e perigosos duma virtude fantástica, duma religião nojenta, imitai a ardente Eugênia; destruí, desprezai, com tanta rapidez quanto ela, todos os preceitos ridículos inculcados por pais imbecis.

E vós, amáveis devassos, vós que desde a juventude não tendes outros freios senão vossos desejos, outras leis senão os vossos caprichos, que o cínico Dolmancé vos sirva de exemplo; ide tão longe quanto ele, se como ele desejais percorrer todas as estradas floridas que a lubricidade vos prepara; convencei-vos, imitando-o, de que só alargando a esfera de seus gostos e suas fantasias, e, sacrificando tudo ã volúpia, o infeliz indivíduo, conhecido sob o nome de homem e atirado a contragosto neste triste universo, pode conseguir entremear de rosas os espinhos da vida.[1]

Se em Heráclito e seu pensamento tem-se marcado a fluidez, a mudança, o movimento, Hegel o aplica à história, demonstrando como método de captação pela razão, uma leitura de eventos que possuem mais ou menos a mesma configuração, acrescentando uma finalidade de progresso. Já, em Nietzsche, que notadamente fora influenciado, conforme nota-se em seu método genealógico, o que se evidencia é a aplicação de sua máxima referente à expansão da vontade – a única lei universal no homem é a vontade de expandir sua potência, como motor do mundo – não para o bem, não para o mal, mas, tão somente para além destas limitações. Ponto para Heráclito[2] Sade observa o gestual com olhares vulgarizantes.

As formas de controle exigem demarcação, classificação, controle, revisão, práticas estas que por si só não são ruins ou boas, mas ambivalentes, no sentido que o presente escrito quer demonstrar – o que se fez de tamanho poder?

Provoca Foucault, na obra Microfísica do Poder: “por que obedecer tanto”? Nos lembrando que foram necessários os acordos de se instituir um poder, a que todos deveriam seguir, baseado na égide do controle daquele ímpeto selvagem de tempos remotos, tempos de violência e conquista pela ampliação dos territórios; freio na constituição de culturas dos que conquistam suprimindo a cultura dos conquistados; rédeas curtas ao colonialismo desenfreado – processos necessários em que liberdades são cerceadas em nome do bem comum, mas o incômodo é esta demasiada obediência que, por fim, retira a própria liberdade do mesmo jeito.

Sob a perspectiva do samurai, somos sádicos e masoquistas – Sádicos quando imbuídos da ideia do que seja exatamente justiça, sob o patrocínio da força apolínea, pura, clara; munidos da mão destruidora de Musashi[3] com sua espada forjada a partir do remo, que não corta, mas esmaga; aplicamos o castigo necessário para continuarmos a gozar do mundo construído a base do medo do caos, do diferente. Como sádicos, coexistimos ao modo masoquista, carregados da culpa constante por cometermos pequenos delitos, ora permitidos em tempos favoráveis, ora proibidos se economicamente inviáveis – tal como a esplendorosa adaptação da Boticário ao mercado, quando na narrativa de inclusão aos “excluídos” que tem coragem de assumir seu lado dionisíaco, e se reinventam mesmo em seu íntimo – sim, o Direito bate continência ao mercado – neste sentido, não somente um sentimento de alívio após as palmadas nas vergonhas traseiras, mas prazer em sermos dominados pelo lacaio da deusa justiça. Sade ri e goza, deitado em sua alcova, tomada por sangue, excremento e suor, acompanhado do cheiro de sexo violento da noite passada.

E isto interessa a quem seja: o que fizeram com as informações fornecidas na compra daquele ingresso pelo site “X”? Que uso se faz dos dados fornecidos no momento de logar em um aplicativo de redes sociais? Ainda, se as permissões concedidas quase que a priori pelos usuários, na instalação de aplicativos em smartphones e computadores, são para o conforto e agilidade na hora de sugerir de forma inteligente (baseado nas escolhas padrão do usuário), o que se fez desses mesmos dados e preferências de escolha/ busca?

Estas são algumas das indagações frente a um problema que acontece, inclusive neste momento de leitura (por meio da captação de caracteres por bases de dados muito sofisticadas). Uma das frases marcantes do filme Watchmen, de Zack Snider, é a seguinte: “Whos whatch the watchmen”? Quem, afinal de contas, está vigiando o poder?

A cultura e, consequentemente todas as instâncias sociais de legitimação, como religião, direito, escolas, academias de tiro, musculação, crossfit; programas de rádio e televisivos, de culinária, organização familiar, de teorias da conspiração, de jornais sensacionalistas, todos, são afetados por ideias que inspiram ou assombram. Mas o objetivo deste presente trabalho é delimitado: demonstrar os efeitos da constatação da vigilância velada em nossas vidas. Dita legal, pois assinou-se um contrato em linguagem estranha ao homem médio, no momento da instalação de aplicativos, de assinatura em canais do streaming, de inscrição em redes sociais; aceitação contratual expressa, ainda que nada se tenha lido ou entendido – ora, isto é tácito ou expresso? Pergunta Sade, enquanto na inversão de papéis.

A saturação é um efeito causado pela repetida vibração sonora, que, após um tempo sendo emitida, nossa consciência perde a capacidade de captá-la de forma precisa, passando a um estado de vigília. O efeito continua sendo produzido, mas nossa mente consciente “desviou” o foco. E assim como no fenômeno da saturação, o homem médio não apenas concorda com esse tipo de vigilância em sua vida, mas a defende com a coragem hercúlea.

Essa vigilância se apoia num sistema de registro permanente: relatórios dos síndicos aos intendentes, dos intendentes aos almotacés ou ao prefeito. No começo da “apuração” se estabelece o papel de todos os habitantes presentes na cidade um por um; nela se anotam “o nome, a idade, o sexo, sem exceção de condição”; um exemplar para o intendente do quarteirão, um segundo no escritório da prefeitura, um outro para o síndico poder fazer a chamada diária. Tudo o que é observado durante as visitas, mortes, doenças, reclamações, irregularidades, é anotado e transmitido aos intendentes e magistrados. Estes têm o controle dos cuidados médicos; e um médico responsável; nenhum outro médico pode cuidar, nenhum boticário preparar os remédios, nenhum confessor visitar um doente, sem ter recebido dele um bilhete escrito “para impedir que se escondam e se tratem, à revelia dos magistrados, doentes do contágio”. O registro do patológico deve ser constante e centralizado. A relação de cada um com sua doença e sua morte passa pelas instâncias do poder, pelo registro que delas é feito, pelas decisões que elas tomam.[4]

Por meio desta passagem, da obra de Michel Foucault, Vigiar e Punir, fica demonstrada, já no medievo, o modo de operar do poder no que concerne o controle social. É demarcando, classificando, adotando ou excluindo, baseados na lógica binária que se pode almejar a harmonia – leia-se, freio do que é naturalmente fluidez, caótico – a vida, a existência.

Foucault ainda demonstra algumas nuances deste sistema, apoiado no campo bélico por excelência (as ideias advindas das universidades; das ciências) – aquilo que ficou conhecido como panoptismo:

O Panóptico de Bentham é a figura arquitetural dessa composição. O princípio é conhecido: na periferia uma construção em anel; no centro, uma torre; esta é vazada de largas janelas que se abrem sobre a face interna do anel; a construção periférica é dividida em celas, cada uma atravessando toda a espessura da construção; elas têm duas janelas, uma para o interior, correspondendo às janelas da torre; outra, que dá para o exterior, permite que a luz atravesse a cela de lado a lado. Basta então colocar um vigia na torre central, e em cada cela trancar um louco, um doente, um condenado, um operário ou um escolar. Pelo efeito da contraluz, pode-se perceber da torre, recortando-se exatamente sobre a claridade, as pequenas silhuetas cativas nas celas da periferia. Tantas jaulas, tantos pequenos teatros, em que cada ator está sozinho, perfeitamente individualizado e constantemente visível (grifo perquiridor). O dispositivo panóptico organiza unidades espaciais que permitem ver sem parar e reconhecer imediatamente. Em suma, o princípio da masmorra é invertido; ou antes, de suas três funções — trancar, privar de luz e esconder — só se conserva a primeira e suprimem-se as outras duas. A plena luz e o olhar de um vigia captam melhor que a sombra, que finalmente protegia. A visibilidade é uma armadilha (grifo clareador). O que permite em primeiro lugar — como efeito negativo — evitar aquelas massas compactas, fervilhantes, pululantes, que eram encontradas nos locais de encarceramento, os pintados por Goya ou descritos por Howard. Cada um, em seu lugar, está bem trancado em sua cela de onde é visto de frente pelo vigia; mas os muros laterais impedem que entre em contato com seus companheiros. É visto, mas não vê; objeto de uma informação, nunca sujeito numa comunicação. A disposição de seu quarto, em frente da torre central, lhe impõe uma visibilidade axial; mas as divisões do anel, essas celas bem separadas, implicam uma invisibilidade lateral. E esta é a garantia da ordem. Se os detentos são condenados não há perigo de complô, de tentativa de evasão coletiva (grifos de gritos mudos), projeto de novos crimes para o futuro, más influências recíprocas; se são doentes, não há perigo de contágio; loucos, não há risco de violências recíprocas; crianças, não há “cola”, nem barulho, nem conversa, nem dissipação. Se são operários, não há roubos, nem conluios, nada dessas distrações que atrasam o trabalho, tornam-no menos perfeito ou provocam acidentes (grifos sem forças para o grito). A multidão, massa compacta, local de múltiplas trocas, individualidades que se fundem, efeito coletivo, é abolida em proveito de uma coleção de individualidades separadas. Do ponto de vista do guardião, é substituída por uma multiplicidade enumerável e controlável; do ponto de vista dos detentos, por uma solidão seqüestrada e olhada.[5]

Apontando ainda, os efeitos gerados por este tipo de arquitetura no interior do indivíduo. O medo e a culpa.

Daí o efeito mais importante do Panóptico: induzir no detento um estado consciente e permanente de visibilidade que assegura o funcionamento automático do poder (grifo sádico). Fazer com que a vigilância seja permanente em seus efeitos, mesmo se é descontínua em sua ação; que a perfeição do poder tenda a tornar inútil a atualidade de seu exercício; que esse aparelho arquitetural seja uma máquina de criar e sustentar uma relação de poder independente daquele que o exerce (grifo sádico); enfim, que os detentos se encontrem presos numa situação de poder de que eles mesmos são os portadores. Para isso, é ao mesmo tempo excessivo e muito pouco que o prisioneiro seja observado sem cessar por um vigia: muito pouco, pois o essencial é que ele se saiba vigiado (grifo masoquista); excessivo, porque ele não tem necessidade de sê-lo efetivamente. Por isso Bentham colocou o princípio de que o poder devia ser visível e inverificável (grifo ambivalente entre o sádico e o dominado). Visível: sem cessar o detento terá diante dos olhos a alta silhueta da torre central de onde é espionado. Inverificável: o detento nunca deve saber se está sendo observado; mas deve ter certeza de que sempre pode sê-lo. Para tornar indecidível a presença ou a ausência do vigia, para que os prisioneiros, de suas celas, não pudessem nem perceber uma sombra ou enxergar uma contraluz, previu Bentham, não só persianas nas janelas da sala central de vigia, mas, por dentro, separações que a cortam em ângulo reto e, para passar de um quarto a outro, não portas, mas biombos: pois a menor batida, uma luz entrevista, uma claridade numa abertura trairiam a presença do guardião. O Panóptico é uma máquina de dissociar o par ver-ser visto: no anel periférico, se é totalmente visto, sem nunca ver ; na torre central, vê-se tudo, sem nunca ser visto (grifo voyeur). Dispositivo importante, pois automatiza e desindividualiza o poder. Este tem seu princípio não tanto numa pessoa quanto numa certa distribuição concertada dos corpos, das superfícies, das luzes, dos olhares; numa aparelhagem cujos mecanismos internos produzem a relação na qual se encontram presos os indivíduos. As cerimônias, os rituais, as marcas pelas quais se manifesta no soberano o mais-poder são inúteis. Há uma maquinaria que assegura a dissimetria, o desequilíbrio, a diferença. Pouco importa, conseqüentemente, quem exerce o poder (grifo alienante). Um indivíduo qualquer, quase tomado ao acaso, pode fazer funcionar a máquina: na falta do diretor, sua família, os que o cercam, seus amigos, suas visitas, até seus criados. Do mesmo modo que é indiferente o motivo que o anima: a curiosidade de um indiscreto, a malícia de uma criança, o apetite de saber de um filósofo que quer percorrer esse museu da natureza humana, ou a maldade daqueles que têm prazer em espionar e em punir (grifo acompanhado do rubor na face ao se reconhecer). Quanto mais numerosos esses observadores anônimos e passageiros, tanto mais aumentam para o prisioneiro o risco de ser surpreendido e a consciência inquieta de ser observado. O Panóptico é uma máquina maravilhosa que, a partir dos desejos mais diversos, fabrica efeitos homogêneos de poder.[6]

Com esta exposição breve de uma das formas de controle social pelo poder, haverão leitores saturados que não percebem, ou ainda, preferem não se importar com o evidente estupro da privacidade, argumentando, por vezes que este tipo de modos de operação é fruto de ficções da sétima arte. Para tanto, se faz mister invocar um certo traço de ceticismo e empiria.

Com as denúncias de Snowden e, um pouco anteriormente, Assange (Wilileaks), o mundo soube daquilo que já desconfiara, mas por não se achar tão importante, ou ainda, de que não está classificado mediante sua conduta social, como alguém que causaria algum mal, não acredita que possa ser alvo de tais ilicitudes tornadas lícitas pelo próprio poder – e aqui, o efeito da Saturação, anteriormente citado, se faz entender um pouco mais. Assim nos mostra a história, assim nos mostra o eterno conflito de opostos que abrira esta discussão (a dialética hegeliana e a vontade potência nietzschiana).

Conforme denúncias de Snowden, veiculadas pelo jornal The Guardian, a agência de inteligência norte-americana, a NSA, criou, custeou e ilicitamente protegeu programas de vigilância ilegais, não somente aqueles ditos inimigos, mas por algumas manobras muito habilidosas na Lei, e claro, sob a égide de proteção contra o terrorismo.

Embora a NSA seja oficialmente um órgão público, mantém incontáveis parcerias com empresas do setor privado, e muitas de suas principais funções forma terceirizadas. A agência em si tem em torno de 30 mil funcionários, mas também mantém sob contrato cerca de 60 mil funcionários de companhias particulares, que muitas vezes prestam serviços essenciais. O próprio Snowden não era funcionário da NSA, mas sim da Dell Corporation e da grande prestadora de serviços da área de defesa Booz Allen Hamilton. No entanto, assim como outros prestadores de serviços de empresas privadas, trabalhava dentro instalações da NSA, executando uma de suas principais funções e com acesso a seus segredos.[7]

Além das prestadoras de serviço de inteligência e defesa, essas parcerias corporativas incluem também algumas das maiores e mais importantes empresas de internet e telecomunicações, justamente aquelas que processam a maior parte das comunicações do mundo e podem facilitar o acesso a dados pessoais. Após descrever as missões da agência – “Defensiva” (proteger os sistemas de telecomunicações e computadores dos Estados Unidos de qualquer exploração) e “Ofensiva” (interceptar e explorar sinais estrangeiros – , um documento ultrassecreto da NSA enumera alguns dos serviços fornecidos por essas empresas:

.8

O PROGRAMA BLARNEY

Nesses programas, a NSA explora o acesso de determinadas empresas de telecomunicações a sistemas internacionais depois de elas terem firmado contratos com companhias semelhantes no exterior para criação, suporte e melhoria de suas redes. Em seguida, as empresas norte-americanas redirecionam os dados de comunicação do país-alvo para repositórios da NSA.

O principal objetivo do programa BLARNEY é descrito em um documento informativo da NSA:

O BLARNEY dependia de uma relação em especial: uma parceira de longa data com a AT&T Inc., segundo o Wall Street Journal em uma reportagem sobre o programa. Segundo os arquivos da NSA, a lista de países-alvo do BLARNEY em 2010 incluía o Brasil, França, Alemanha, Grécia, Israel, Itália, Japão, México, Coreia do Sul e Venezuela, além da União Europeia e da ONU.[8]

De acordo com documentos na NSA, o FAIRVIEW “está tipicamente entre os cinco maiores programas da NSA em matéria de coleta de dados para produção em série” – ou seja, vigilância constante – “e é um dos maiores fornecedores de metadados”. Sua dependência avassaladora de apenas uma empresa de telecomunicações é demonstrada pela afirmação de que “cerca de 75% da transmissão provém de uma única fonte, o que reflete o acesso privilegiado do programa a uma grande variedade de comunicações-alvo”. Embora a empresa não seja identificada, uma descrição do parceiro do FAIRVIEW deixa clara sua disposição para cooperar (ver documento original na página 266, figura 4):

10[9]

Estes documentos não representam 1% de toda denúncia veiculada por Snowden e Greenwald, em seu livro Sem lugar para se esconder, tornando evidente que as políticas adotadas pelo poder, cartografadas e denunciadas por Foucault, Marx e outros, nos alertam, como um golpe na têmpora, de que estamos na fase de saturação mais elevada, e ainda preferindo se deixar controlar em nome de uma vida que busca sentido no consumo que adormece todos os sentidos.

Referente as habilidade antes citadas, Greenwald, que antes de ser jornalista, atuara como advogado especialista em direitos constitucionais, explicita a destreza do poder:

A Lei de Emendas FISA, de 2008, é hoje a legislação que rege a vigilância da NSA. Possibilitada por um Congresso bipartidário na esteira do escândalo dos grampos não autorizados da NSA na era Bush, um de seus principais resultados foi legalizar efetivamente os pontos cruciais do programa ilegal do ex-presidente. Como o escândalo revelou, Bush havia concedido uma autorização secreta à NSA para grampear cidadãos americanos e estrangeiros dentro dos Estados Unidos, justificada pela necessidade de identificar (grifo nosso) atividades terroristas. A

ordem eliminou a necessidade de obter os mandados aprovados judicialmente em geral necessários para a espionagem doméstica, e resultou na vigilância secreta de no mínimo milhares de pessoas dentro do país (grifo nosso).[10]

E, numa referência ao Conde de Secondat[11] em sua célebre frase: “quando a lei corrompe”, explicita-se o jornalista sobre o que ocorrera:

Apesar de protestos alegando que o programa era ilegal, a lei de 2008 buscou institucionalizar o esquema, não encerrá-lo. Ela atem por base uma distinção (grifo nosso) entre “indivíduos dos Estados Unidos” (cidadãos norteamericanos e pessoas que estejam legalmente em território norte-americano) e todos os outros (grifo perquiridor). Para ter como alvo as ligações ou os emails de um indivíduo dos Estados Unidos, a NSA precisa de um mandado específico do tribunal FISA.

Para todas as outras pessoas, porém, onde quer que estejam, não é necessário nenhum mandado específico, mesmo que elas estejam se comunicando com indivíduos dos Estados Unidos. Pela seção 702 da lei de 2008, a NSA só precisa submeter uma vez por ano ao tribunal da FISA suas diretrizes gerais relativas aos alvos daquele ano – o critério exige apenas que a vigilância “auxilie a coleta legítima de inteligência estrangeira” – de modo a receber autorização geral para prosseguir. Depois que essas diretrizes recebem o carimbo de aprovadas do tribunal da FISA, a NSA pode eleger como alvo de vigilância qualquer cidadão estrangeiro que quiser, e também obrigar empresas de telefonia e internet a lhe dar acesso a todas as comunicações de qualquer pessoa não americana: chats do Facebook, e-mails do Yahoo!, buscas do Google. Não é preciso convencer o tribunal de que a pessoa é culpada de alguma coisa (grifo de Montesquieu), nem mesmo de que existe motivo para desconfiar do alvo, e tampouco filtrar os indivíduos dos Estados Unidos que acabarem sendo vigiados pelo meio do caminho.[12]

Desta tentativa dialética de expor, com um salto temporal de pouco mais de quarenta anos, Foucault e os eventos causados pelo Wikileaks e Snowden, e mais recentemente sobre as conversas vazadas de Sérgio Moro e Delagnol, nos mostram, ainda que adormecidos depois de tanto tempo sentado sobre as nádegas, que o Grande Irmão orweliano nunca dorme. Continua sua vigilância, com métodos cada vez mais avançados, graças ao uso que Ciência encontrou para se manter politicamente (bastando lembrar dos financiamentos da região do Vale do Silício e a Google) – o novo panóptico não precisa de celas, nós o adquirimos pelo suor do próprio esforço, nós queremos esta vigilância – de fato estamos conscientes de seus efeitos?

Hackers, por uma mera convenção linguística, também foram classificados em “bons hackers” (que servem muito bem às agências de inteligência, independente da ética seguida ou os métodos, bastando servir ao poder instituído democraticamente) e o “hacker do mal” (mais conhecidos como crackers, numa referência de degeneração linguística para significar algo violento, algo invasivo, que quebra). Por ironia, sob a égide da Lei, a ABIN nomeia, classifica, permite aqueles que podem ou não ter acesso a métodos e meios de vigilância – em outras palavras (com base nos recentes eventos), aquilo que o próprio poder delimita como lícito.

Se antes a vigilância era dos deuses, e instituições como a igreja, a escola, as penitenciárias a utilizaram, hoje, nosso novo panóptico não só está presente em nossas vidas, trabalhamos pela aquisição deste. Ainda que no interior da Sibéria, ou em complexos das favelas, nos confins do sertão, todos lutam para estarem conectados e afirmarem, dia a dia sua identidade (ao menos aquela que acreditamos ser a nossa).

O panóptico das tecnologias não só é aceito como defendido. Os efeitos gerados pelas denúncias (e no fundo este é nosso papel pelo ceticismo) causam nas pessoas o controle a partir da vigilância constante. Pessoas controlam seus comportamentos por terem internalizado o guarda vigilante, ainda que ele não esteja olhando. Sade, satisfeito pelo andar da história, abre uma casa de voyeurismo – e, mesmo cobrando altas quantias, seu público suplica pela entrada.


[1] SADE, Donathien Alphonse François de. Filosofia na Alcova. PDF, p. 4.

[2] Heráclito de Éfeso, o Obscuro. Filósofo pré-socrático que formulou suas teorias a partir da noção de natureza pelo movimento, devir, fluidez e a eterna luta de opostos. Uma de suas célebres frases exprime um pouco de seus pressupostos: “um homem jamais se banha duas vezes no mesmo rio, pois nem o homem e nem as águas do rio são os mesmos”. (NOTA DO PERQUIRIDOR).

[3] Miyamoto Musashi, fora um samurai que viveu no período do Japão Feudal, entre 1584 – 1645 d.C, vencedor de mais de sessenta duelos de vida e morte, tendo participado de guerras como a batalha de Sekigahara. Ao fim de sua vida, isolou-se em uma caverna para escrever reflexões sobre estratégias de combate, resultando no Livro dos Cinco Anéis. Hoje utilizado para elaboração e inspiração dos meios corporativos – se vivo, ele mesmo escalpelaria estes empresários. (NOTA DO PERQUIRIDOR).

[4] FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir. p. 220, PDF.

[5] FOUCAULT, p. 223, 224.

[6] Ibid, p. 224, 225, 226.

[7] GREENWALD, Glenn. Sem lugar para se esconder. p. 108. 8            GREENWALD, p. 108, 109.

[8] Ibid, p. 110.

[9] Ibid, p. 111.

[10] GREENWALD, p. 81.

[11] Referência a Charles Luis de Secondat, mais conhecido como Montesquieu (nota do perquiridor).

[12] Ibid, p. 81, 82.

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