por Lucas Soares

Há uma necessidade humana de se entender, funcionalmente, todo o seu objeto de criação (produto). Está no resultado desta criatura a funcionalidade de seu uso, tornando o ato da produção como um elemento comprobatório da sua própria existência como deus:
“O mistério da criação estética, assim como o da criação material, então se realiza. O artista, como o Deus da criação, permanece dentro, junto, atrás, ou acima da obra, invisível, clarificado fora da existência, indiferente, raspando as unhas dos seus dedos” (JOYCE, p.149, 1987).
Ao organizar pragmaticamente as intenções, o autor que deseja se ver como portador daquele objeto recém-criado, não encontra morada na sua obra, como um excluído, à margem de um círculo que o centrifuga, “não tem mais acesso a si mesmo, onde ele, entretanto, está encerrado, porque a obra, inacabada, não o solta (BLANCHOT, 2011, p. 50). Pensemos especificamente no fazer poético, sua (des)funcionalidade natural o torna um objeto ingrato, semelhante a um filho que se põe contrário à presença do pai.
A poesia trafega em sua transcendentalidade, um lugar infindo de liberdade e trajetória que propõe a irradiar em direção a mil relações incertas e possíveis (BARTHES, p.44, 2000): em uma totalidade que não necessita de um “ente” para lhe dar divisas. Um ser de inúmeros canais de expressão que pode se apresentar de muitas formas. A transubstanciação da imagem em verso ou ao contrário, denota a plurissignificação que, partindo de uma concepção de potencialidades do ser, este Dasein (HEIDEGGER, 1979) poético pode incorporar.
O autor, agora poeta, possui objetivos precisamente divinos de permanecer próximo ao seu produto, como um deus bondoso que promove prosperidade à criação e ao mesmo tempo distante como alguém inalcançável acima dos seres no olimpo de sua morada. Uma ingenuidade vaidosa do poeta que tenta segurar a obra fazendo uma concha com as mãos dignas de chagas por onde escorrem dos buracos, causados por cravos de madeira, a água-fonte do poema. A imagem pode até ser contida, assimilada e depois suscitada pelo sonho, mas conforme um pensamento de Goethe, “a ideia, na imagem, permanece infinitamente ativa e inexaurível”. A imagem da arte não possui uma função com a quase-matéria; não precisa estabelecer uma representação do que é percebido pelos sentidos – a imagem se incorpora da poesia – não há uma necessidade de um contrato com a Teoria da forma, como explica Bosi (2000), que “tende ao estado de sedimento”, onde é imprescindível que não ocorra para a compreensão do um todo sem as suas rebarbas.
O leitor, este que toca a obra, pouco familiarizado com o fazer poético pode exigir do artista-autor uma posição entre sua vida e sua produção, esperando, equivocadamente e com certa ingenuidade e truculência, que este tenha uma relação intrincada com a reprodução mimética do espaço que o cerca. A pessoa que interpreta necessita compreender o seu distanciamento da obra. Uma extralocalização que provoca uma desestabilização da percepção da obra como o recurso da ostranenie descrito pelo formalismo russo da primeira metade do século XX. O leitor precisa do estranhamento causado pela extralocalização para não entender a interpretação como empatia e colocação de si mesmo no lugar do outro (Bakhtin, 2017), caso contrário, mediante a necessidade de uma resposta fácil, pode acabar enxergando o objeto – a obra em seu estado físico – como a representação da poesia, negando-lhe seu caráter ôntico, essencial, que trafega sobre a superestrutura como um espírito autônomo.
O poeta francês e crítico literário Stéphane Mallarmé (apud MOISÉS, 2016, p.9), pontua um conceito importante para se entender a literatura, na sua essência de arte, nos dias atuais, ao afirmar “que a literatura existe e, por assim dizer, sozinha, à exceção de tudo”. Com isso, o autor não existe mais, sua identidade não se encontra mais na obra, a poesia retorna como um eco, uma repetição, ao se utilizar de uma visão foucaultiana, no vazio deixado pela Morte de Deus (FOUCAULT, 2001). Uma voz que surge de um apelo inicial, mas que volta como um ser estranho, próprio, um corpus que não possui antecedente. O Autor morre no momento que concebe sua obra:
“Era um ser à
flor da pele. Um ser virado do avesso. Seus olhos eram urnas verdes de silêncio
e sua boca morava na terceira dimensão. Logo que nosso olhar se cruzou, fui
lido e recolhido até a última víscera, e em menos de uma hora eu já tinha me
convertido no longo poema que me exauriu”.
(PESSANHA, 2018, p. 145)
O criador não possui mais história, a valorização se inverte e o interlocutor passa a significar a obra, descentralizando o autor do processo de criação e trazendo o objeto à significação no momento de sua apreciação. O ser poético toma a existência de sua potencialidade quando a arte é ressignificada pelo intérprete e não mais pelas mãos calejadas do escritor, Roland Barthes demonstra esta sensação em “A morte do autor” (2004), quando diz que “o leitor é o espaço exato em que se inscrevem”. O interlocutor como intérprete serve de condução, corroborando com a ideia de que “a unidade de um texto não está na sua origem, mas no seu destino”. O leitor se torna o caminho natural do poema, como uma espécie de cocriador da obra.
O poema materializado se traduz como um depósito de almas, resguarda nas entrelinhas os muitos de sua personalidade fruitiva e traz para o leitor uma maneira nova de significação. Despindo-se do corpo, aquele que aprecia acrescenta novas cicatrizes ao cabedal de sua experiência. As vestimentas se moldam e se impregnam, o criador e o apreciador não podem mais sair ilesos, quando os olhos fitarem o mais singelo dos fenômenos, procurarão na intimidade que os assola um repertório poético para lhe dar significado.
Referências:
BAKHTIN, Mikhail. Notas sobre Literatura, Cultura e Ciências Humanas. São Paulo: Editora 34, 2017.
BARTHES, Roland. O Rumor da Língua. São Paulo: Martins Fontes, 2004.
______. O grau zero da escrita. São Paulo: Martins Fontes. 2000.
BLANCHOT, Maurice. O Espaço Literário.
Rio de Janeiro: Rocco, 2011.
BOSI, Alfredo. O Ser e O tempo da Poesia. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
FOUCAULT, Michel. Prefácio à Transgressão. In: M. FOUCAULT, Ditos e Escritos III. Estética: Literatura e Pintura, Música e Cinema. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2001.
HEIDEGGER, Martin. O Que é Metafísica?. São Paulo: Abril Cultural, 1979.
JOYCE, James. O Retrato do Artista quando Jovem. São Paulo: Editora Ediouro, 1987.
MOISÉS, Leyla Perrone. Mutações da Literatura no século XXI. São Paulo: Companhia das Letras, 2016.
PESSANHA, Juliano García. Recusa do não-lugar. São Paulo: Ubu Editora, 2018.
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