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Efeitos do superdesempenho no psiquismo

por Flávia Tridapalli Buechler

O cotidiano da prática clínica é composto por um universo de narrativas singulares que derivam de histórias, acontecimentos, conflitos, enigmas e sofrimento.

Tem chamado atenção a recorrente demanda de pessoas que procuram atendimento psicológico por conta de sintomas como ansiedade, pensamento acelerado, dificuldade para dormir, falta de sentido na vida, dores no corpo e sensação constante de insatisfação e impotência.

Durante os primeiros atendimentos, esse perfil de paciente apresenta dificuldade de criar hipóteses para falar sobre o que acontece com ele. Não obstante, consegue falar sobre seu humor predominante e sobre os sintomas que sente no corpo. Essa fala é geralmente acompanhada de um estranhamento, como se não fosse possível acreditar na existência um algum mal-estar.

Quando Freud se pôs a escutar as histéricas de sua época, deparou-se com corpos sintomáticos que denunciavam que algo não ia bem. A paralisia do corpo ou de uma parte dele, era um sintoma recorrente nas mulheres da época de Freud. Essas mulheres, diagnosticadas como histéricas, não eram reconhecidas em seu sofrimento pelo saber médico, pois não eram encontradas causas biológicas que justificassem o aparecimento do sintoma de paralisia no corpo. Na grande maioria dos casos, o sintoma era compreendido pelos médicos enquanto farsa, o que denotava que a mulher simulava sua condição de doente. Acontece que Freud escutou algo que os outros médicos de sua época não foram capazes. Ele escutou que aquelas mulheres resistiam de maneira sintomática ao imperativo moral e obsessivo do discurso daquele laço social (MARCON, 2018). Freud percebeu que os sintomas no corpo das histéricas representavam uma forma de resistência frente ao modo de organização daquele laço social, sendo o sintoma uma tentativa da mulher de não sucumbir aos imperativos morais e obsessivos que configuravam aquele laço social. Dessa maneira, Freud compreendeu que os sintomas manifestados pelas pacientes estavam ligados com a forma como as pessoas se relacionam em uma determinada época, ou seja, que a estruturação do sintoma não é de ordem exclusivamente biológica. A singularidade de cada um, portanto, é afetada por esse universo discursivo onde estão todos: o universo social (FREUD, 1921/1996).

Um discurso pode ser entendido como um conjunto de enunciados que organizam o funcionamento desde um determinado grupo, até uma sociedade inteira. A forma como habitamos o mundo é construída discursivamente, bem como, a forma como nos relacionamos com nós mesmos e com os outros também o é. À essa relação eu/outros, mediada pela linguagem humana, damos o nome de laço social. O discurso pode ser considerado como uma variável histórica, seja ela singular ou universal, que marca desde o contexto de uma vida até o contexto de uma época. Por exemplo, a representação social do que é ser mulher no final do século XIX, não é a mesma do que é ser mulher na época atual, assim como o discurso que determinava o que era ser negro na época da escravidão, não é mais o mesmo atualmente.

Voltolini (2018) refere que a arquitetura de um discurso deriva da criação de uma verdade que articula saber e poder, e que por meio dessa verdade o discurso se veicula, se justifica e se legitima. Segundo o autor, essa verdade não faz referência a nenhuma exterioridade ou alteridade, sendo ela sempre autorreferente, pois “[…] trata-se de uma verdade cuja legitimidade e eficiência dependem do que se arma na própria discursividade” (p. 53). Dessa maneira, evidencia-se o caráter totalitário, violento e alienante que um discurso pode ter, pois se as normativas discursivas de determinado laço social não estão referenciadas à critérios outros que não os próprios, inevitavelmente caímos num reducionismo pautado em interesses que, com frequência, privilegiam poucos em detrimento de muitos. A radicalidade dessa arquitetura discursiva que determina uma forma de laço social, pode ser observada na política de hierarquização das raças, veiculada pelo Nazismo, que justificou e oficializou crimes contra a humanidade. Sendo que os acontecimentos nos campos de extermínio nazistas só foram reconhecidos enquanto crimes em uma época posterior, pois na época em que de fato aconteceram, estes crimes não eram reconhecidos oficialmente enquanto tal (LEBRUN, 2010).

Freud ao identificar que as narrativas e sintomas que o paciente manifesta no contexto do consultório não pertencem exclusivamente ao campo biológico – ou seguindo a tendência da ciência positivista moderna, ao campo cognitivo-comportamental –, e que há uma relação intrínseca dessas narrativas e sintomas com a forma como se arquiteta o discurso que determina o laço social de uma determinada época, nos coloca inevitavelmente frente a pergunta: o que os sintomas de ansiedade, pensamento acelerado, dificuldade para dormir, falta de sentido na vida, dores no corpo e sensação constante de insatisfação e impotência, denunciam a respeito dos imperativos discursivos de nossa época?

Touraine (1997), relata que a particularidade da transição da sociedade de produção para a sociedade de consumo em massa é comandada por duas constatações: 1) a percepção de que com o passar do tempo houve uma dissociação crescente entre economia e cultura, e 2) a percepção de que as sociedades contemporâneas são marcadas por “[…] ações estratégicas cuja finalidade não é criar uma ordem social mas acelerar a mudança, o movimento, a circulação dos capitais, dos bens e dos serviços” (p.27). Segundo o autor, a configuração do discurso dominante atual que determina o laço social contemporâneo é marcada por um vazio sócio-político crescente, onde o poder está nas mãos de estrategistas que em vez de governarem e administrarem um território estão mais preocupados em conquistarem mercados.

Na mesma linha, Lipovetsky & Serroy (2015), referem que atualmente a época em que vivemos é nomeada como hipermodernidade, sendo ela, governada por uma forma de capitalismo que se caracteriza pelo hiperconsumo e pela estetização do mundo. Segundo os autores, de um capitalismo centrado na produção e na satisfação de necessidades fundamentais, passamos para um capitalismo de consumo em massa, onde o consumidor mínimo é substituído pelo consumidor ilimitado, e onde a existência humana está centrada nos ideais de autodeterminação, realização pessoal, experiências sensoriais, imediatas e renovadas.

O que esses autores sinalizam, de modo geral, é que há no discurso dominante atual uma valorização da vida privada em detrimento da vida pública, e ainda, a valorização de princípios econômico-mercantis em detrimento de princípios sociais, o que denota o surgimento de novas formas de relação e subjetivação. Como afirma Jappe (2019), quando refere que o sujeito contemporâneo está dominado por valores “oficiais”, como o de trabalhar muito para consumir muito e os imperativos de competição, performance, eficiência e velocidade, sem se perguntar a serviço do que é necessário segui-los.

Duas falas que apareceram no cotidiano da prática clínica ajudam a exemplificar os possíveis efeitos desse discurso dominante no modo de subjetivação do sujeito contemporâneo. Certo dia, durante um atendimento, escutei de um adulto a seguinte fala: “Eu assistia àquelas séries onde as pessoas trabalham sem parar, onde elas vivem o trabalho dia e noite e nada acontece com elas… Existe a trama da história, vitórias e derrotas, mas aquelas pessoas do seriado não adoeciam… Eu acabei acreditando que aquilo era possível…”. Em outro momento, escutei de um adolescente: “Eu não quero parecer arrogante, mas uma das duas coisas mais importantes pra mim é o dinheiro, a outra é a família… Porque você sabe né… Sem dinheiro a gente não é ninguém e eu quero ser alguém na vida”. Trata-se de duas falas diferentes, mas que se aproximam ao sinalizarem o principal ordenador de todos os campos da existência humana atualmente: o dinheiro. Na fala do adolescente, o imperativo de que é preciso ter para ser aparece de forma explícita, já na fala do adulto, o mesmo imperativo aparece de forma implícita, encobrido através da crença de que trabalhar da mesma forma que os personagens do seriado trabalham pressupõe reconhecimento e lucro, valores que a sociedade atual aprecia.

É evidente que ninguém trabalha sem parar, apenas por satisfazer-se com o trabalho que realiza. Inclusive, me parece que o que acaba acontecendo é justamente o contrário. Não raro escuta-se que as pessoas trabalham sem parar naquilo que não traz satisfação e sentido, no entanto, a fala que se segue é a de que o trabalho traz dinheiro e que o dinheiro possibilita o consumo, aí sim, entra-se em contato com a “verdadeira” satisfação. Esse tipo de narrativa, não está restrito ao contexto do consultório, é facilmente percebida em qualquer lugar onde há pessoas conversando sobre as próprias vidas, e me parece exemplar para demonstrar os efeitos nos modos de subjetivação a partir da transição da sociedade de produção para a sociedade de consumo.

É na sociedade de consumo que o trabalho tem seu valor reduzido à aquisição de dinheiro, e esse último, serve estritamente para o consumo sem parar e a qualquer preço de tudo aquilo que é ofertado pelo mercado. Atualmente, o trabalho possui um sentido único, trabalha-se para consumir, e essa dupla trabalho/consumo parece resumir a vida de muitas pessoas, o que não por acaso faz com que escutemos cada vez mais a queixa de que não há mais sentido na vida[1].

Jappe (2017), demonstra o impossível que estrutura o discurso dominante de nossa época ao armar para o sujeito um circuito que promete a partir da lógica do consumo, da mercadoria e do dinheiro, satisfação e realização plenas. O autor relata que a lógica do mercado, que é de natureza concreta, almeja preencher algo que é de natureza abstrata. Pois quando propõe ao sujeito que aquisição de objetos, bens e serviços lhe direcionarão para uma vida feliz, realizada e com sentido, o discurso da sociedade de consumo rechaça uma característica inerente do sujeito, a saber: sua condição de ser marcado por uma falta estruturante, falta que o lança para os caminhos do desejo que jamais cessa, visto que só é possível satisfazermo-nos parcialmente (FREUD 1929/2010). Segundo Jappe (2017), são graves as consequências desse modo de organização discursiva que insiste em negar a incompletude constituinte do sujeito de desejo, relata que a particularidade desse discurso “[…] não é a avidez como tal, mas uma avidez que a priori não pode jamais obter o que a satisfaz” (p.05). O autor retoma o mito de Érysichthon e o mito do rei Midas para demonstrar o alto preço que pagamos ao aderir e legitimar esse encantamento produzido pelo discurso dominante da sociedade de consumo: no primeiro mito, os excessos de um rei fazem com que os deuses o condenem à fome insaciável, o que o leva a comer de tudo até ao ponto de comer a si mesmo (autofagia); já no segundo mito, um rei ganancioso é castigado pelos deuses, a partir do qual tudo em que toca vira ouro, inclusive, a própria comida, o que inevitavelmente o leva a morrer de fome.

 Nessa lógica, Han (2017) refere que com a transição da sociedade de produção para a sociedade de consumo também ocorreu uma mudança na topologia da violência. Segundo o autor, as novas formas de subjetivação estão submetidas aos imperativos de um discurso caracterizado atualmente por uma violência positiva e mais internalizada. A violência se torna positiva através dos imperativos de excesso que o discurso dominante impõe aos sujeitos, desmesuras que não levam em consideração os limites do corpo e da mente humana, como são, por exemplo, as demandas de superdesempenho, superprodução, consumo ilimitado e hiperatividade. Outras falas recorrentes no dia-a-dia enfatizam essas demandas, como o famoso “tempo é dinheiro”, “quero pra ontem”, “nenhuma oportunidade pode ser perdida”, “você pode ser e conseguir o que quiser, basta querer”, dentre outras. O sujeito pós-moderno paga um preço caro por tentar incansavelmente atingir a promessa de satisfação constante e pleno desenvolvimento que a sociedade de consumo vende como possível em cada produto, bem ou serviço que oferta. Se antes havia um outro, detentor de um poder por meio do qual impunha arbitrariamente suas decisões e explorava a minoria, Han (2017) relata que atualmente essa violência encontra-se “[…] mais interiorizada, psicologizada e, assim, acaba se tornando invisível” (p.11). Isso significa dizer que a tendência do homem pós-moderno é a exploração de si mesmo, e que o projeto liberal de ser um homem livre acaba tornando-se um projétil contra a própria a vida, pois ao ultrapassar e transgredir limites físicos e mentais o sujeito chega a ponto de consumir-se por inteiro, entra em colapso (HAN, 2017). É nesse momento que devido sintomas de esgotamento físico e mental o paciente chega ao consultório sem ter muitas notícias do que está acontecendo com ele, e com frequência, já faz uso de alguma medicação psicotrópica – ansiolíticos ou antidepressivos – com o intuito de diminuir seus sintomas e sofrimento. Por vezes também, são pacientes que receberam diagnóstico de transtorno de ansiedade, transtorno depressivo, síndrome do pânico, estresse agudo, transtornos do ciclo vigília-sono ou burnout.

A partir das considerações de Han (2017) e Jappe (2017), cabe indagarmo-nos: estaríamos “progredindo” para uma sociedade “autofágica”? Uma sociedade onde passamos do consumo de objetos para o sujeito consumido? Freud (1938/2004), já alertava que a desmesura do progresso pode se aliar à barbárie. Isso não significa dizer que avanços econômicos e tecnológicos não devam acontecer, mas denota, como afirma Sponville (2011), que é preciso ter cuidado com os domínios da ordem econômico-tecnocientífica, pois, por se tratar de um campo movido exclusivamente por interesses e processos econômicos, não faz parte da sua estruturação interna questões de ordem ética e moral. Em vista disso, faz-se necessário evitar a recusa em reconhecer os fatos atuais que sinalizam o curto-circuito do meio ambiente, da ordem social, da saúde física e mental e da dignidade humana. Na medida em que o dinheiro, o consumo, o lucro e os interesses privados continuarem a ser, acima de tudo e de todos, os ordenadores principais do laço social de nossa época, fortifica-se uma lógica perversa de relacionamento que caminha lado a lado com o colapso do singular e do universal.

FLÁVIA TRIDAPALLI BUECHLER é psicóloga, especialista em psicopatologia da infância e da adolescência e especializanda em psicanálise, sujeito e laço social (UNIFEBE/HSC).

REFERÊNCIAS

Freud, S. (1996). Psicologia das massas e análise do ego. S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, Trad., Vol. 18, pp. 77-154). Rio de Janeiro: Imago (Trabalho original publicado em 1921)

Freud, S. (2004). O homem Moisés e a religião monoteísta. Trad. de Renato Zwick. Porto Alegre: LP&M. (Trabalho original publicado em 1938)

Freud, S. (2010). Mal-estar na civilização. Companhia das Letras: São Paulo. (Trabalho original publicado em 1929)

Han, B-C. (2017). Topologia da violência. Vozes: Rio de Janeiro.

Jappe, A. (2017). La société autophage: capitalisme, démesure et autodestruction. Éditions La Découverte: Paris.

Jappe, A. (2019). Entrevistado por Bernardo Álvarez-Villar, via El Salto, traduzido por Daniel Alves Teixeira. Recuperado de: https://lavrapalavra.com/2019/05/08/nenhum-problema-atual-precisa-de-solucoes-tecnicas-se-trata-sempre-de-problemas-sociais/

Lebrun, J-P. (2010). O mal-estar na subjetivação. CMC Editora: Porto Alegre.

Lipovetsky, G; Serroy, J. (2015). A estetização do mundo: viver na era do capitalismo artista. Companhia das Letras: São Paulo.

Marcon, H. H. (2018).  Quando o sujeito descompleta o universal. Tese (Doutorado em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano) – Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2018. doi:10.11606/T.47.2018.tde-26102018-185822. Acesso em: 2019-08-25.

Sponville, A. C-. (2011). O capitalismo é moral? 2ª Ed. Editora WMF Martins Fontes: São Paulo.

Touraine, A. (1997). Iguais e diferentes: poderemos viver juntos? 1ª Ed. Instituto Piaget: Lisboa.

Voltolini, R. (2018). O psicanalista e a polis. In: Estilos clin., São Paulo, v. 23, n. 1, jan./abr., pp. 47-61. Recuperado de: http://pepsic.bvsalud.org/pdf/estic/v23n1/a04v23n1.pdf


[1] Essa ideia é refletida por mim no texto Aprender a morrer, publicado no mês de agosto/2019, link para acesso: https://caosfilosofico.com/2019/08/11/aprender-a-morrer/

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