por Luiz Eduardo Cani e Sandro Luiz Bazzanella

“O que tem fome e te rouba
O último pedaço de pão, chama-o teu inimigo
Mas não saltas ao pescoço
Do teu ladrão que nunca teve fome”.
(Bertold Brecht)
Iniciamos pelo poema de Brecht, na epígrafe. A sutileza é cirúrgica: há mais de um modo de retirar as condições de subsistência de alguém, mas apenas uma delas é considerada crime.
Esse raciocínio pode ser generalizado, afinal de contas, o Direito justifica sua utilidade a partir da colocação da garantia social de aplicação de normas permissivas ou proibitivas de comportamentos (além das normas de funcionamento/operacionalização das outras normas). As normas permissivas e proibitivas são hipóteses, suposições sobre comportamentos futuros, não sem inspiração na memória pretérita, pois, como lembra Bernard Feltz (2014, p. 19-31), a dedução é uma continuidade da indução, tanto quanto a indução é resultado da continuidade da dedução.
Dito de outro modo, quando se pretende criar normas que delimitam comportamentos, criando e organizando discursos e práticas sob a justificativa de garantia da “liberdade” (como se a liberdade fosse condição existencial que pode ser orientada, ou organizada por alguma espécie de poder, desconsiderando que seu exercício é de foro majoritariamente individual diante da necessidade de posicionamento na ação, cujo resultado incide sobre os demais indivíduos no espaço público), que depois, será consumida como recurso na dinâmica capitalista (DARDOT; LAVAL, 2016, p. 17), precisamos minimamente atentar para as multiplicidades de comportamentos, direitos fundamentais e objetos existentes, na medida em que esses serão elementos afetados através da produção jurídica.
O poema de Brecht lança luz sobre esses três elementos. Primeiro, a discussão sobre as múltiplas formas de atingir o mesmo resultado cujo centro gravitacional, no contexto capitalista, é a concorrência, mas também a propriedade. Segundo, os direitos fundamentais de matriz social, limitados no caso da fome (alimentação, saúde e, em última análise, vida, pelo menos). Terceiro, o objeto pão, uma espécie do gênero alimentício, mas que, juridicizado, é convertido em propriedade.
Até aqui nada parece ter relação com o título do texto. Façamos o giro.
Está em tramitação na Assembleia Legislativa do Estado de Santa Catarina (ALESC) o projeto de lei 235/2019, cujo propósito é tornar obrigatório o exame toxicológico para alunos da Universidade Estadual de Santa Catarina (UDESC) (SANTA CATARINA, 2019).
Aqui os mesmos três problemas surgem, mas sem a sutileza de Brecht. Primeiro, o grupo de destinatários da norma abrange apenas os alunos (sujeitos determinados). Segundo, a obrigatoriedade restringe a liberdade dos alunos e, ao se circunscrever aos alunos, os trata desigualmente em relação às demais pessoas e, até mesmo, aos demais universitários de SC (direitos fundamentais restringidos). Terceiro, incide sobre drogas, sem especificá-las, apenas ressalvando as medicações com prescrição médica (objeto indeterminado, cuja interpretação não está descrita).
Esses problemas encaminham a uma constatação de Michel Foucault (2005, p. 250): um discurso demanda formação regular, ou seja, regras para que seja formado, pois é tanto mais maleável, quanto menos regras discursivas tiver. Nesse sentido, é necessário delimitar os elementos constitutivos do discurso para que contradiscursos não possam ser formulados a partir de ambiguidades e de faltas.
Nesse sentido, o PL 235 é um oceano de ambiguidades e de faltas. Apenas a título de ilustração: Por que servidores e professores não estão submetidos ao exame? Por que é requisito apenas para o ingresso? Por que os familiares de professores, servidores, alunos e funcionários terceirizados não estão submetidos também? Vamos exigir também dos deputados? E para continuar no mandato? O que é droga? A cachacinha de fim de semana vale? E a cervejinha do happy hour? Cigarro? E o charuto da comemoração? Hamburgão com muita gordura e maionese não é droga (olhem lá, é causa de muitas doenças)? Comer carne pode? E doce? Farinha? Bacon?
É sempre bom dar nome aos bois. O nome desse PL é “Pimenta no cu dos outros é refresco” ou “PL da Hipocrisia nossa de cada dia”! Um PL sem regra discursiva, poroso, insustentável e inútil. Dinheiro para tramitar essa porcaria temos, mas para as cirurgias eletivas, não (IGOR, 2019)…
Estamos vivenciando tempos marcados por uma espécie de derrota do pensamento que potencializa a emergência de uma racionalidade instrumental moralizadora que adentra pelos poderes de Estado configurando nuances de totalitarismo. Num primeiro olhar o PL 235 se apresenta como desarrazoado legislativo. Ou seja, o custo de um deputado para os cofres públicos é considerável, o que significa dizer que seus esforços deveriam voltar-se eminentemente para as questões públicas e estatais. As questões morais vinculam-se a esfera dos costumes e é no âmbito do debate comunitário e social que podem fazer sentido. Num segundo olhar constatamos a derrocada do sistema parlamentar representativo. Ou seja, quando a ALESC acolhe um PL desta natureza, advindo de grupos políticos vinculados a demandas religiosas moralistas estamos diante da crise de legitimidade do princípio da representatividade da maioria, característico de sociedades democráticas. Num terceiro momento, este PL que pretende intervir no âmbito da moral privada aponta para a condição pueril, heterônoma da sociedade catarinense e brasileira, que se caracteriza pela crença de que é preciso que o “Grande Pai” judiciário esteja sempre de prontidão para cercear e punir os indivíduos incapazes de guiar de forma sensata suas vidas.
Esta moralização e judicialização dos costumes vai na contramão de uma das principais tarefas destes tempos, que se trata de paralisar a máquina jurídica. Se este PL for adiante proporemos PL complementar para os acadêmicos da UDESC exigindo apresentação todas as segundas-feiras de carteirinha carimbada no fim de semana atestando participação em culto, ou em alguma atividade religiosa e de manifestação de fé.
LUIZ EDUARDO CANI é doutorando em Ciências Criminais (PUCRS), bolsista da CAPES, advogado e professor.
SANDRO LUIZ BAZZANELLLA é doutor em Ciências Humanas (UFSC) e professor de Filosofia.
Referências
DARDOT, Pierre; LAVAL, Christhian. A Nova Razão do Mundo: Ensaio Sobre a Sociedade Neoliberal. Trad. Mariana Echalar. São Paulo: Boitempo, 2016.
FELTZ, Bernard. A ciência e o ser vivo. Filosofia das ciências e modernidade crítica. Trad. Filipe Duarte. Lisboa: Edições Piaget, 2014.
IGOR, Renato. Hospitais públicos suspendem cirurgias eletivas em Santa Catarina. NSC Total, Florianópolis, 10 set. 2019. Disponível em: < https://www.nsctotal.com.br/noticias/hospitais-publicos-suspendem-cirurgias-eletivas-em-santa-catarina>.
SANTA CATARINA. Assembleia Legislativa. PL 235/2019, de 11 de julho de 2019. Disponível em: <http://visualizador.alesc.sc.gov.br/VisualizadorDocumentos/paginas/visualizadorDocumentos.jsf?token=a82c252bab5d3be38cea2965daaf5ae1162cfe4fa278f132be6d99c145bb59cc47a40691b98d657bae80e7d50b529ad7>.
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