por Flávia Tridapalli Buechler

Sobre a Brevidade da Vida é um texto em que Sêneca reflete sobre a finitude da vida humana e a negligência que o homem ocupado tem com seu próprio tempo. O filósofo defende que não temos exatamente uma vida curta, mas que desperdiçamos boa parte dela em ocupações pouco significativas perto do que a vida humana tem a oferecer.
Sêneca enfatiza a responsabilidade que o homem tem com o próprio tempo. Se pensarmos as características de como o tempo é vivido hoje, facilmente o sentimos demasiado apressado, o que lhe atribui, inevitavelmente, a condição de escasso. É fácil perceber isto na prática, por exemplo, quando com frequência escutamos falas como: “24 horas é pouco”; “preciso de mais tempo no meu dia”; “é pouco tempo para tanta coisa, preciso de mais horas”; “falta tempo pra fazer tudo” … Esta experiência temporal que advém com a modernidade, não é a mesma da época do filósofo, contudo, o que Sêneca aponta de particular é que a experiência de como vivenciamos o tempo não é sem consequências para o modo como vivenciamos a experiência de vida.
Ao descrever o homem ocupado como aquele que posterga o contato com a própria vida, lançando-a sempre para um futuro do qual não sabe nem se chegará, Sêneca adverte que o desejo de viver não deve ser pensado como projeto, mas deve ser experienciado como realização a cada dia:
“Ouvirás a maioria dizendo: “Aos cinquenta anos me dedicarei ao ócio. Aos sessenta, ficarei livre de todos os meus encargos”. Que certeza tens de que há uma vida tão longa? […] Que tolice dos mortais de adiar para o quinquagésimo e sexagésimos anos as sábias decisões e, a partir daí, onde poucos chegaram, mostrar desejo de começar a viver?” (SÊNECA, 2018, p.32).
Sêneca escreve que a vida nada mais é que uma breve parcela do tempo e que este existiu antes de nascermos e continuará a existir quando a morte chegar. Desta maneira, destaca que a noção de vida com frequência é pensada distante da noção de finitude imposta pelo tempo real que é o tempo do corpo. Ao postergar o encontro com seus próprios desejos o homem ocupado se perde no cálculo do que ele foi, do que ele é e do que será, e nesta hesitação acaba por renunciar ao encontro com si próprio e com os outros, bem como torna aquilo que o filósofo nomeia como aprender a viver um fato de difícil acontecimento.
Ao final da vida ou diante do momento em que percebe a finitude o homem ocupado entra num intenso estado de angústia, onde compreende que o tempo foi curto demais visto que sua vida foi supérflua e não proveitosa. Para este homem, a morte será resistência, pois em dívida consigo, o preço da constante ocupação foi alto demais. Segundo o filósofo, a finitude se torna menos penosa para o homem que aprende a viver para além de suas ocupações.
Quando pensamos nos moldes de como as vidas se configuram desde a modernidade, não raro escutamos falas que com pesar denunciam uma insatisfação em relação ao uso que se faz do próprio tempo e da própria vida: “eu deveria ter feito diferente”; “se eu pudesse voltar no tempo”; “gostaria de ter aproveitado mais”; “poderia ter trabalhado menos”; “não vivi o que gostaria” … A ênfase aqui, não está em dizer que atualmente isso acontece mais que em outras épocas. O que chama atenção é a semelhança do conteúdo escrito por Sêneca (há mais de dois mil anos) com narrativas que facilmente escutamos na atualidade. Esta observação remete a uma pergunta: a permanência no tempo de uma determinada forma de viver que comporta em si relações de distanciamento com os outros e com a própria vida se sustenta hoje sobre quais circunstâncias?
NORMA E DISCURSOS DOMINANTES ATUAIS
“O contraste entre a psicologia individual e a psicologia social ou de grupo […] perde grande parte de sua nitidez quando examinado mais de perto. […] Algo mais está invariavelmente envolvido na vida psíquica do indivíduo […] de maneira que, desde o começo, a psicologia individual neste sentido ampliado, mas inteiramente justificado das palavras, é, ao mesmo tempo, também psicologia social” (FREUD, 1921, p.39).
A psicanálise desvela ao mundo um outro olhar sobre o homem. Com a descoberta do inconsciente, Freud coloca em cena outro tipo de sistema que compõe o aparelho psíquico e que opera por meio de leis e processos próprios. Lacan, ao retomar Freud, revela que o inconsciente se estrutura como linguagem, o que indica, sumariamente, que sua constituição e manifestações ocorrem por meio de um sistema conhecido como Simbólico. Este, se caracteriza como uma ordem universal que abrange todo o campo da ação e existência humana, envolve precisamente a noção de significante que é o que diferencia a linguagem humana da linguagem animal.
Por razão de ênfase neste ensaio, o que se faz importante ressaltar é o laço que a psicanálise estreita entre o sujeito e o social, este último entendido como rede de discursos que operam na viabilidade e manutenção da vida em conjunto. A afirmação de Freud de que toda psicologia individual é também psicologia social denota que a fala de cada sujeito é sempre afetada por discursos dominantes de uma determinada época. Um exemplo na história do poder de governabilidade que um discurso pode ter sobre uma sociedade e sobre a ação de cada sujeito é o nazismo, que por meio da identificação em massa ao discurso higienista dominante da época, oficializou a execução de crimes contra a própria humanidade.
Desta maneira, podemos reformular a pergunta anterior para: quais os imperativos discursivos atuais que sustentam uma determinada forma de viver que comporta em si relações de distanciamento com os outros e com a própria vida?
A prática clínica constata diariamente o sofrimento de pessoas que ocupam seu tempo com situações que lhes roubam a sensação de viver para além das obrigações e de como isso as distancia de si e dos outros: “não sei mais o que me satisfaz”; “não vejo sentido na vida”; “quando me resta tempo fico perdido”; “trabalho também nas minhas horas de folga”; “não tenho vontade de me relacionar com as pessoas” … Estas falas, com frequência, derivam de narrativas de vidas que se caracterizam por um repertório automatizado diário e produtor de constante insatisfação. Em outras palavras, não raro testemunhamos no consultório a existência de vidas cheias de ocupação e vazias de experiências sociais e públicas.
A vida contemporânea aparece marcada por dois discursos dominantes, a saber: o discurso do capitalismo e o discurso da tecnociência. O primeiro caracteriza-se pela lógica de produção e consumo, assim como, comporta a promessa de que a felicidade e satisfação plena são atingidas via aquisição de objetos ofertados pelo mercado. O segundo caracteriza-se pela generalização da técnica e ascensão da ciência positivista, que preconiza o homem apenas enquanto ser racional-comportamental, constrói um modelo ideal de homem a qual todos devem se referenciar e considera problemas sociais somente a partir de soluções técnicas.
O sujeito contemporâneo à luz destes dois discursos é aquele que facilmente se encontra alienado aos imperativos do consumo, da satisfação constante, da felicidade, do utilitarismo, da meritocracia e do individualismo. Isso significa dizer que atualmente o aprender a viver transformou-se em aprender a ter tudo que o mercado oferta e aprender a ser conforme determinada forma ideal. Contudo, ter o que o mercado oferta e ser conforme determinada forma, implica na segregação de todos aqueles que não têm e/ou que são de outra forma, os diferentes.
Observa-se atualmente que para o indivíduo ter um lugar de reconhecimento enquanto sujeito no discurso social, ele precisa, inevitavelmente, seguir e viver um projeto que o insere numa corrida interminável atrás do que ele deve ter e ser, na promessa ilusória de que em um tempo depois poderá viver à sua maneira. De modo geral, o sujeito contemporâneo vive o projeto que pensaram para ele e não um projeto pensado por ele.
O reconhecimento de um único modelo ao qual todos devem corresponder à sua imagem e semelhança é fatal para cada sujeito de carne e osso. Bem como, empobrece e por vezes aniquila a existência do humano enquanto um ser de ação, transformação, relação e polissemia. Servir às normativas dos discursos dominantes atuais não é sem efeitos tanto na vida privada (sintomas, psicopatologias, medicalização) quanto na vida pública (segregação, preconceitos, intolerâncias, violência).
Voltolini (2018), escreve que diferente da lei que marca o limite, a norma marca a conduta, o comportamento que deve ser feito, e assim sendo, tem como principal objetivo disciplinar corpos. O autor também destaca que a norma facilita o comportamento onde o pensar está dispensado, o que viabiliza o cumprimento cego de qualquer discurso, seja ele fundamentado em uma ética ou no horror. Pode-se, portanto, considerar que numa sociedade em que a normativa seja a ocupação – de produzir e consumir para corresponder ao indivíduo ideal do mercado – fica de fora a reflexão, capacidade do ser humano indispensável para a sua condição de ser livre.
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A percepção de narrativas atuais que condizem com reflexões da Antiguidade não é sem desconforto na medida em que denunciam possíveis cristalizações no modo de pensar e de viver do ser humano. Sêneca enfatizou em seu texto uma faceta mais individual das consequências que o homem ocupado sofre ao reduzir a sua existência à sua força de trabalho. Freud ao sinalizar que toda psicologia individual é também social adverte que o sofrimento observável no cotidiano da prática clínica sinaliza mal-estares que primeiramente encontram-se enraizados e sustentados no campo social. Esta indissociabilidade entre o individual e o social – entre o privado e o público – é preciso ser considerada com o rigor que exige, visto que quando o homem opta por se eximir da reflexão e invenção de um mundo novo para si e para os outros, normas são instituídas por discursos fundamentados em interesses individuais, onde não apenas o aprender a viverde cada um está em jogo, como também o viver juntos.
O tempo não envelhece, existia antes de chegarmos ao mundo e continuará existindo após nossa partida. Mas a história tal como a escrevemos – quando nos responsabilizamos enquanto autores da vida privada e da vida pública – ou deixamos que a escrevam – quando servimos cegamente às normativas e ideais – é um marcador importante do impacto do homem no mundo. A história é a chave de leitura que cada época tem para não permitir mais uma vez a instauração de discursos cristalizados que impedem o movimento disforme – no sentido daquilo que não tem padrão – da humanidade. A característica de movimento é indispensável para a condição de liberdade do humano, por isso que diante de discursos que têm como objetivo oficializar apenas um modelo de ser e de viver, é preciso que todos sejamos resistência.
FLÁVIA TRIDAPALLI BUECHLER é psicóloga, especialista em psicopatologia da infância e da adolescência e especializanda em psicanálise, sujeito e laço social.
REFERÊNCIAS
FREUD, S. Psicologia de grupo e análise do ego. ESB das Obras Completas, Vol. XVIII, Rio de Janeiro: Imago, 1921/1976.
SÊNECA, L. Sobre a brevidade da vida. Tradução Lúcia Sá Rebello, Ellen I. N. Vranas; Gabriel N. Macedo. Coleção L&PM Pocket, Vol. 548, Porto Alegre: L&PM, 2018.
VOLTOLINI, R. O psicanalista e a pólis. In: Estilos clínica; vol. 23; n°1; São Paulo: jan./abr. 2018. Acessado em: http://pepsic.bvsalud.org/pdf/estic/v23n1/a04v23n1.pdf
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