ARTIGOS

“Close” e a fabricação do masculino

por Fabio Belo

O filme belga “Close” (Lukas Dhont, 2023), apesar de repleto de clichês, é uma excelente oportunidade didática para falarmos sobre a fabricação do gênero masculino.

Léo e Rémi são amigos, ambos com 13 anos. Uma amizade típica entre meninos: inventam brincadeiras, correm, dormem juntos. Não há nada propriamente sexual no contato entre os dois. Apenas algo erótico que permeia toda amizade íntima.

No entanto, na escola, uma menina questiona se os dois formam um casal. Isso deixa Léo profundamente perturbado. O menor sinal da homofobia dispara a rejeição absoluta do contato com o amigo. Rémi não percebe – ou não quer perceber – esse jogo novo da adolescência. Rémi toca oboé e parece ser claramente sensível. (É um dos clichês do filme, como se a música o tornasse mais feminino). Léo escolhe juntar-se aos meninos que jogam hóquei no gelo e futebol. Ou seja, o grupo dos homens, dos heterossexuais, o grupo cuja função precípua é sufocar qualquer possibilidade erótica entre os homens.

Rémi não suporta essa separação e acaba por se matar. Ficamos na dúvida se ele já havia tentado o suicídio outras vezes. Há uma cena na qual sua mãe o xinga porque ele trancou a porta do banheiro. Será que Rémi já sabia de sua homossexualidade? Será que já sabia dos imperativos mortíferos que recaem sobre os homens gays? Será que vivia com Léo um espaço terno ainda não invadido por esse binarismo sádico e dilacerante da orientação sexual?

Quem clinica, sabe: homens gays desde muito cedo recebem a mensagem – dispersa na cultura e/ou claríssima de seus pares familiares – que eles não devem existir. Sua orientação sexual é a marca da vergonha irremediável, um sinal para exclusão e toda forma de brutalidade advinda dos outros homens. A cultura machista endereça aos homens gays a impossibilidade de serem reconhecidos, uma injunção para não existir, já que deixar de lado sua orientação sexual não é uma escolha possível.

Léo toma sua decisão quase que instantaneamente. A pergunta da coleguinha na escola foi o sinal: a amizade carinhosa demais entre homens é proibida e será punida com o bullying, o ostracismo e a violência. Rémi não quis ver isso ou não quis lutar contra isso.

O que salta aos olhos no filme é que há silêncio e sempre uma enorme dificuldade de conversar sobre os afetos. Léo não avisa nada para Rémi, não compartilha com seus pais a cena da escola. Da mesma forma, Rémi não consegue conversar com Léo: ele o ataca, briga com ele, mas não conversa, apesar de tentar ainda endereçar algumas vezes gestos de carinho prontamente rechaçados por Léo.

O final do filme reitera isso: a mãe de Rémi, Sophie, num primeiro momento culpa Léo também, depois que ele, finalmente, consegue expressar que se sente culpado. Logo depois, ela o abraça, mas não fala nada.

O filme é uma aula sobre os efeitos mortíferos da homofobia na nossa cultura. A construção da heterossexualidade dos homens encontra uma de suas bases na violência sistemática contra as figuras que forma o outro do macho hetero branco cis: o gay, o/a trans, a mulher, o/a negro(a). Cada um desses outros receberá uma carga diferente de violência para manutenção da identidade dos homens se erigir como universal, modelo da perfeição, da infalibilidade, “imagem e semelhança” aos deuses.

O sofrimento dos homens é permanentemente silenciado. A linguagem da ternura e do cuidado deve o quanto antes ser substituída pelos jogos sádicos de violência. Um dos clichês do filme: Léo cai ao jogar hóquei e fratura o pulso. Nada de desmunhecar por aí. Pulso firme. Osso bem cicatrizado em nome do amor aos homens, mas um amor deserotizado, dessexualizado à força.

O choro do pai de Rémi, também silencioso, é tocante: vale a pena manter essa violência contra os meninos pelo simples fato de serem gays? Vale a pena interromper a vida de uma criança em nome de um falocentrismo infantil?

Enfim, o filme é um lugar comum nas narrativas necessárias para a educação moral e sentimental de nossos adolescentes. Num tempo no qual ainda temos que lutar muito contra a teocracia militar-neoliberal, fortemente apoiada na homofobia e na misoginia grotescas, filmes como esse são mais que bem-vindos.

FABIO BELO é psicanalista e professor da UFMG

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