por Barbara Raulino e Karine Szuchman

“Não era nada fácil lançar luz sobre fatos esquecidos, talvez fosse mais simples inventar.”
Annie Ernaux
Em sua estreia como diretora, Charlotte Wells faz uma brilhante e sensível invenção em Aftersun, longa-metragem já premiado e aclamado pela crítica. Ali vemos as memórias de Sophie, ao recordar as férias que passara na Turquia com seu pai quando ela tinha 11 anos.
No tempo presente, Sophie está fazendo aniversário e podemos supor que está fazendo 31 anos, a mesma idade que seu pai completou durante a viagem que ela agora assiste a partir das gravações, feitas pelo pai e por ela mesma, em uma câmera caseira. As imagens escancaram a cumplicidade em uma relação bonita de acompanhar – são cenas cotidianas, como os dois escolhendo o que vão jantar no restaurante do hotel, um passeio de barco, um silêncio compartilhado, uma conversa enquanto escovam os dentes, perguntas espontâneas e sem nenhuma pretensão que, por isso mesmo, são muito próximas da vida real.
Há uma cena em que Sophie está com a câmera ligada fazendo perguntas para seu pai e ele pede que a filha pare de gravar. Ela então desliga a filmadora e diz que vai gravar apenas com sua câmera mental. Por vezes, parece que são essas as imagens as quais temos acesso: aquelas que costumam aparecer em fragmentos pouco nítidos, ressaltando detalhes que podem parecer insignificantes ao invés do quadro inteiro. Por alguns segundos vemos só uma mão, dedos se mexendo lentamente, cabelos balançando, um olhar denunciando o cansaço por trás do sorriso do pai. Um gesto, um traço – imagens como as que nossas memórias costumam registrar. Outras cenas se repetem ao longo do filme, como a do pai dançando sob luzes estroboscópicas que, ao gerarem flashes, produzem o efeito de algo que não está nítido para nós e, muito provavelmente, nem para Sophie.
As atitudes de Sophie, na atuação impecável de Frankie Corio, nos indicam que ela sabe que há algo de estranho/errado com seu pai. Acompanhamos, com certa angústia, as várias tentativas de Sophie de trazer o pai para o presente, para a cena. Podemos observar isso em alguns momentos, mas um em especial se destaca: quando Sophie inscreve ela e o pai para cantar no karaokê e o pai não vai, deixando-a cantar sozinha a música Losing my religion. Ela dirige a ele seu olhar enquanto canta: “I thought that I heard you laughing/I thought that I heard you sing/I think I thought I saw you try… But that was just a dream”.[1]
Algo move Sophie a rever aqueles vídeos, bem como move Charlotte Wells a produzir esse filme que conta uma história sua. Poderia agora, a partir de seu olhar de adulta, com a idade que o pai tinha, compreendê-lo melhor e quem sabe, captar algo que antes uma menina de 11 anos não conseguiu? O que mesmo ela estaria buscando?
Julia Simões, ao escrever sobre a história de sua família, resgatando lembranças e fotografias, aponta que:
“todo o processo de desvelamento das memórias envolve ocultamentos, silenciamentos e esquecimentos que levam à dúvida a frágil linha entre memória e imaginação, ou recriação. E a dúvida é um motor poderoso.” (SIMÕES, 2022, p. 31)
O mesmo acontece com Sophie que, ao tentar encontrar pistas, muitas vezes se depara com aquilo que foi silenciado, ocultado, e que, como disse Julia Simões, pode levar à dúvida entre o que é memória e o que é imaginação. Sabemos, no entanto, que essa linha por si só já é fictícia, uma vez que toda memória é também imaginação. Aqui não compreendemos imaginação como o contrário de verdade, mas justamente, como aponta Lélia Gonzalez, a memória como “lugar de inscrições que restituem uma história que não foi escrita, o lugar da emergência da verdade, dessa verdade que se estrutura como ficção.” (GONZALEZ, 2020, p.78)
Enquanto espectadoras, somos convocadas a tentar preencher as lacunas que a diretora escolhe deixar em branco, tomadas pela interrogação de Sophie – que sabe que algo não vai bem, mas não consegue entender o que é. À medida que as cenas vão se desdobrando, vamos acompanhando certa tensão crescendo e, como Sophie, não sabemos bem de onde vem. Mas assim como a foto da polaroid que eles tiram no jantar e que se revela aos poucos, o filme vai lentamente nos revelando uma imagem sobre o pai e sobre a relação dos dois.
Assim como Sophie (e Charlotte?) a escritora francesa Annie Ernaux também busca um lugar na memória para a sua relação com o pai em seu livro O lugar. Ernaux decide escrever sobre o pai reconstruindo sua vida e descrevendo suas características, diz que vai recolher as falas, os gestos, os gostos, as mudanças que foi percebendo, até se sentir perdendo, na essência, a figura do pai. Reconhece então, que aquilo que a faz se aproximar da imagem dele é se entregar para suas memórias. Os fatos dão lugar para o que ela registrou dele: seu sorriso, o modo como caminhava, os dois no parque de mãos dadas e o carrossel que a enchia de medo.
A associação entre Ernaux e Aftersun fica ainda mais interessante quando sabemos que Charlotte Wells se inspirou em uma fotografia das férias que passou com seu pai na Turquia, quando tinha 11 anos, para dirigir o filme. É também através de fotografias que Ernaux resgata algumas das memórias sobre o pai. É bonito pensar no que cada uma consegue escrever (uma com palavras e outra com imagens) sobre o que as fotografias provocaram nelas. Afinal, não se trata apenas das fotos, mas sim, do que da memória se convoca ao olhar a foto.
Ao retornar para o passado, Ernaux mergulha na cidade de Y. (como é descrita no livro), onde seus pais moraram durante toda a vida, diferente dela que saiu de lá para fazer faculdade. Ao falar sobre a vida do pai em Y., ela nos diz de um distanciamento/estranhamento que revela seu não pertencimento a esse lugar, ao mesmo tempo que revela certa culpa por essa distância. Aqui Ernaux se aproxima menos de Sophie e mais de seu pai, Calum, que em determinado momento de Aftersun, diz que “uma vez que você deixa o lugar onde você cresceu, você não pertence inteiramente lá novamente”. A autora, vencedora do prêmio Nobel, ao falar do pai, diz que está escrevendo sobre a felicidade e sua condição alienante. No entanto, assim como Sophie mergulha no tempo para assistir àquelas férias, que de início parecem pura felicidade e alienação, a escrita de Ernaux – tal qual as imagens de Aftersun – revela rachaduras que estão ali e que depois de expostas, já não permitem mais alienação.
Outra escritora contemporânea que publica um livro sobre seu pai é a nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie. Ela diz que sempre teve o desejo de documentar as histórias sobre o pai, ainda que conhecesse seu passado, gostaria de gravá-lo contando. Seu projeto ficava sempre para depois, e ele faleceu antes que ela o realizasse. Ela então escreve que “há uma sensação assustadora de afastamento, de uma ancestralidade que escapa, mas eu tenho o suficiente, se não para a memória, pelo menos para o mito”. (ADICHIE, 2021, p. 102)
É esse o lugar em que se encontram Charlotte Wells e Annie Ernaux: ao reescrever a memória, fazer a narrativa de um mito. Ninguém promete fidelidade aos arquivos históricos. A diretora de Aftersun, pelo contrário, faz questão de nos mostrar o avesso da certeza, as oscilações da memória, a imaginação entre o que foi e o que poderia ter sido – essa especialmente condensada na comovente cena final. Ao som de Under Pressure, pai e filha dançam no passado, tempo que se intercala com cada um deles dançando quando adultos. Eles ora se afastam, ora se aproximam. É sua última dança – this is our last dance – e a letra da música transmite um sentimento que parece atravessar o tempo e os personagens.
‘Cause love’s such an old fashioned word
And love dares you to care for
The people on the edge of the night
And loves dares you to change our way of
Caring about ourselves
This is our last dance[2]
BARBARA RAULINO é psicóloga e psicanalista associada da APPOA
KARINE SZUCHMANN é psicóloga e doutoranda em Psicologia Social e Institucional (UFRGS)
REFERÊNCIAS
ADICHIE, Ngozi Chimamanda. Notas sobre o luto. São Paulo: Companhia das Letras, 2021.
ERNAUX, Annie. O lugar. São Paulo: Fósforo, 2021.
GONZALEZ, Lélia. Por um feminismo afro-latino americano: ensaios, intervenções e diálogos. Rio de Janeiro: Zahar, 2020.
SIMÕES, Júlia da Rosa. A estranha ideia de família. Porto Alegre: Arquipélago, 2022.
[1]Pensei ter ouvido você rindo/ Pensei ter ouvido você cantar/ Eu acho que pensei ter visto você tentar… Mas aquilo foi apenas um sonho.
[2]Porque o amor é uma palavra tão fora de moda, e o amor te desafia a se importar com as pessoas na beira da noite e o amor desafia você a mudar nosso modo de nos preocupar com nós mesmos. Esta é nossa última dança.
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