por Monique Bonomini

O autor russo, Fiodor Dostoiévski, em sua obra, Os Irmãos Karamazov (1880), propõe uma reflexão incômoda. Seu personagem, Aliocha Karamazov, um seminarista, é questionado pelo irmão Ivan, ateu, com o seguinte dilema: “Suponhamos, diz Ivan, que para fazer os homens eternamente felizes fosse inevitável e essencial torturar durante uma infinidade de tempo uma pequena criatura, um menino que fosse, apenas um único. Você o consentiria?”
A resposta para esta pergunta pode parecer intuitiva, mas não é. Há um abismo separando o ideal do real, tanto que é Dostoiévski e sua dor diante do sofrimento infantil, quem Svetlana Aleksiévitch cita no lugar de um prefácio, na sua obra As últimas testemunhas, lançado no Brasil em 2018 pela Companhia das Letras, trazendo relatos das crianças soviéticas que sobreviveram a segunda guerra mundial.
Neste livro, a perspicácia da autora em colher depoimentos e extrair deles as memórias mais marcantes resgata as lembranças de dor, desamparo, frio e fome daqueles que experimentaram a infância durante o conflito que reconfigurou o mundo. Enquanto seus pais e mães estavam no front, milhares de crianças foram recolhidas em abrigos, muitas sem jamais rever seus parentes.
Não foi a primeira vez que a autora abordou o tema, antes disso, em A guerra não tem rosto de mulher, que chegou ao Brasil em 2016, pela mesma editora, ela apresentou relatos aflitos de mães que não conseguiam alimentar seus filhos, e mães que os viam morrerem no rigoroso inverno e até mesmo de uma mãe que desesperada para não ser pega pelos alemães na floresta impôs o silêncio ao seu bebê que esperneava, mergulhando-o para sempre na lama.
São obras atemporais, que alertam para quanto sofrimento infantil a humanidade é capaz de produzir, suportar e ignorar.
Em pesquisa recente realizada pela Oxfam Brasil os dados sobre o retorno do Brasil ao cenário de fome dos anos 90 são estarrecedores. Atualmente no país, apenas quatro em cada dez domicílios conseguem manter acesso pleno à alimentação, ou seja, estão em condição de segurança alimentar. Os outros seis se dividem numa escala, que vai dos que permanecem preocupados com a possibilidade de não ter alimentos no futuro até os que já passam fome. Em números, são 33,1 milhões de pessoas que não têm o que comer.
Nos lares com crianças menores de dez anos, em pouco mais de um ano, a fome dobrou – de 9,4% em 2020 para 18,1% em 2022. Na presença de três ou mais pessoas com até 18 anos de idade no grupo familiar, a fome atingiu 25,7%. Já nos domicílios onde moram apenas adultos a segurança alimentar chegou a 47,4%, número maior do que a média nacional, e um tanto cruel, pois a fome não atinge quem, em tese, tem mais condições de suportá-la.
Há quem diga que as crianças são o futuro. Como são capazes de colocar sobre impúberes ombros de barrigas vazias o peso de um mundo que não se importa, sequer, que tenham o pão de cada dia para dar conta de carregar sua pequena existência no presente?
Mas, quando vêm à baila temas como aborto, educação sexual nas escolas, exposição de arte queer, celebrações de religiões de matriz africana, a sociedade se organiza e sai às ruas e às redes para proteger suas crianças, que apartadas do zelo com a moral e os bons costumes, definham na inanição.
É tempo de abrir os olhos, traçar paralelos entre o que se tem agora e o que estávamos conquistando há um tempo atrás. Se as crianças são o futuro precisamos alimentá-las, para que sobrevivam, e cheguem ao futuro.
É indecente o hábito humano de pagar com sofrimento infantil o preço das péssimas decisões tomadas por adultos egoístas, que se esqueceram das primeiras lições dadas às crianças: que saibam dividir e ofereçam ao coleguinha o alimento que carregam para que não fiquem com vontade.
Afinal, somos capazes de nos comover diante de uma criança que sofre? E quanto do que uma criança pode suportar, somos capazes de ignorar em nome de viver pacificamente, prezando pela civilidade?
MONIQUE BONOMINI é advogada, professora de história e revisora
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Que texto, Monique. Um mito de indignação e questionamento porque os adultos usam as crianças, em tudo. Elas acabam sofrendo as consequências da insensatez dos adultos, cegos nos seus intuitos. E eu ouvi pessoas dizendo: ” O que será dos meus netinhos agora que Lula foi eleito. Uma pessoa querida, amorosa, não gosta de brigar, solidária, batalhadora e simples com medo do Lula. E nordestino. Pensei na África, nos palestinos, nos judeus, nos brasileiros e Bessa estatísticas que você citou sobre a fome. Até nisto o presidente mentiu e este povo que se acha político aplaudiu. Até escudo com crianças usaram para um protesto absurdo pela não eleição do mito.
Parabéns, Monique. Que texto.
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