por Paulo Ferrareze Filho

O Brasil de todos os santos (do pau oco)
A palavra corrupção vem do latim corruptus e significa “ato de quebrar aos pedaços”. Na Grécia Antiga, os corruptos tinham seus nomes inscritos numa pedra exposta em praça pública. Essa punição era chamada de “ostracismo”. Da Roma Antiga, conta-se que um juiz de nome Lucius Antonius Rufus Appius costumava vender suas decisões a quem pagasse mais. Por conta de sua assinatura abreviada (L.A.R. Appius), o termo “larápio” ficou identificado como o de sujeitos corruptos ou ladrões.
Dos portugueses, conta-se que Lisboa foi fundada por Ulisses, que ali descansou depois da longa batalha de Troia. O nome da cidade, Ulissabon – que, do grego, significa “Cidade de Ulisses” – pode representar o DNA embusteiro do espírito brasileiro. “Aquilo que Aquiles não conseguiu durante dez longos anos pela força, Ulisses realizou com a esperteza a partir do estratagema do cavalo de Troia”. Assim é que a identidade nacional é marcada, pela força das imposições coloniais lusitanas, por truques, trapaças e arranjos estratégicos. Não sem razão que Pedro Malasartes, Macunaíma, Zé Pelintra e Malandro Carioca são figuras notáveis do nosso folclore.[1]
Além disso, a administração do Brasil colônia era desorganizada e morosa, uma “máquina burocrática emperrada, ineficiente, monstruosa” e, por isso, terreno perfeito para que a corrupção pudesse se instalar. Associados à má-administração estavam os baixos salários recebidos pelos funcionários da administração colonial, justificativa para a flexibilização das normas de conduta e fomento para a prática do contrabando.
Juízes viam-se às voltas com os altos custos de instalação das jurisdições e deslocamento até onde tinham que servir, assumindo funções em completa penúria financeira. Em que pese todo o esforço da Coroa de inibir o estreitamento das relações de seus magistrados com os locais, negócios, casamentos e relações de compadrio deram conta de construir laços sólidos deles com a elite local.[2]
A expressão “santo do pau oco” conforma, pela via da linguagem, o trauma social da corrupção. Hoje utilizada como sinônimo de pessoa não confiável, a expressão remonta ao período colonial do Brasil, em que “os impostos sobre o ouro e pedras preciosas eram altíssimos. Para enganar a coroa portuguesa, os mineradores recheavam o interior de santas ocas, feitas de madeira, com a maior quantidade desses bens que conseguissem. Com essa artimanha, podiam passar pelas Casas de Fundição sem pagar os impostos abusivos. Assim nasceu a expressão que hoje virou sinônimo de falsidade e hipocrisia”.[3]
Seja com Sérgio Buarque de Holanda, seja com Jessé Souza, ainda que com argumentos diferentes, o Brasil tenta explicar o complexo da corrupção. Para Sérgio, o Brasil é marcado por uma cultura personalista em que regras impessoais não têm força de prevalecer sobre relações particulares. Isso porque os brasileiros apresentam “certa incapacidade, que se diria congênita, de fazer prevalecer qualquer forma de ordenação impessoal e mecânica sobre as relações de caráter orgânico e comunal, como o são as que se fundam no parentesco, na vizinhança e na amizade”.[4] Jessé é ainda mais assertivo quando explica que nossa tradição malandra é derivada da escravidão e da manutenção das elites nos centros de poder da República.[5]
A corrupção também pode ser considerada uma expressão do autoritarismo, na medida em que ele é uma postura de sujeitos que impõem interesses privados sobre interesses públicos, exatamente como tem ocorrido também em certames públicos nas universidades federais do Brasil. Essa estrutura autoritária encontra eco histórico no coronelismo, que combinou o sistema federalista com as oligarquias agrárias. O conhecido “voto de cabresto” é uma das expressões do autoritarismo político brasileiro em que essas duas forças estavam mancomunadas. “Se os senhores dependiam do governador para realizar as obras e as benfeitorias que necessitavam, o governo dependia dos senhores para conquistar eleitorado”, anota Lilia Schwarcz.[6]
A corrupção e a malandragem em terras brasileiras estão também retratadas na literatura icônica de Machado de Assis. Em Dom Casmurro, o vício da corrupção é associado ao personagem de José Dias, o agregado, que se fazia passar por médico e argumentava em defesa própria: “homeopatia é a verdade, e, para servir à verdade, menti”. Também no conto O Alienista, retrata-se a contumaz veia brasileira para a corrupção: “vereador Galvão, tão cruelmente afligido de moderação e equidade, teve a felicidade de perder um tio; digo felicidade, porque o tio deixou um testamento ambíguo, e ele obteve uma boa interpretação, corrompendo os juízes e embaçando os outros herdeiros.”
Esse itinerário histórico permanece vivo na medida em que se observa com certa normalidade quando um grande empresário brasileiro como Luciano Hang vai a público, abertamente, fazer a seguinte confissão, quando questionado pelo repórter Roberto Cabrini:
CABRINI: Você nunca recorreu a caminhos ilegais para o crescimento da Havan?
HANG: Se você disser que fez tudo sempre certo, você é um mentiroso.[7]
A recorrência, a notoriedade e a supremacia de temas ligados à corrupção no debate público brasileiro, especialmente a partir das eleições de 2018, são sintomas que podem confirmar certos movimentos sociais que buscam elaborar esta questão entre nós. As universidades federais, redutos majoritariamente críticos ao bolsonarismo de extorsão do qual Hang é caudatário, infelizmente não estão livres desse modo pouco republicano de operar.
As patotas nas universidades federais
Vou contar uma história pessoal e recente que busca ilustrar o quadro endêmico de corrupção nas universidades federais brasileiras. Antes, porém, ressalvo que esta denúncia não tem o condão de desqualificar a academia nacional e a importância fulcral das universidades públicas no Brasil, especialmente neste sensível momento político em que parte ignorante da administração e do povo buscam deslegitimar o conhecimento científico entre nós com terraplanismos e cloroquinismos. Trata-se de um caso que, entre tantos, pode demonstrar como as universidades públicas não ficam imunes a essa tradição mutreteira que historicamente forja boa parte das instituições brasileiras.
Em janeiro de 2021, tomei conhecimento do edital do concurso para professor de Filosofia do Direito na Universidade Federal do Paraná (UFPR). No nosso Brasil, que leva a educação com absoluto desdém, estar no quadro de uma universidade federal, com estabilidade, bom salário e tempo para pesquisar, é uma espécie de oásis para quem é professor(a) e pesquisador(a). Atirei-me então de corpo e alma na preparação do concurso. Parei de fazer tudo que era parável para me dedicar 110% ao certame. Durante seis meses, nas horas vagas, ocupei-me de estudar detalhadamente os doze tópicos do edital. Comprei livros. Li as teses dos professores que formavam a banca. Pesquisei artigos sobre os temas e seminários disponíveis na internet. Fiz reuniões com colegas e professores para debater temas e conceitos. Estudei todo o material que o tempo permitia para elaborar, na forma de ensaio, doze complexas pesquisas de Filosofia do Direito.
Feita a prova escrita, passei, com outros cinco candidatos, para as fases finais do concurso, que previa a realização de provas didáticas, avaliação do currículo e entrevista. O resultado desse certame, divulgado em meados de 2021, foi o seguinte: o “vencedor”, além de ter sido orientando de mestrado do presidente da banca de julgamento do concurso, foi o único a fazer a prova didática – que consistia em dar uma aula online sobre tópico sorteado – com a câmera desligada.
Insurgir-se contra a fraude significava então tomar posição. Àquela altura, eu escutava de todos ao redor, em uníssono: “pense bem se vale a pena comprar briga com essa gente, porque se comprar, você vai ficar marcado, e nunca mais entrará na universidade pública”. Esse alerta corporificava aquilo que Márcia Tiburi, em Complexo de Vira-latas: análise da humilhação brasileira (Ed. Civilização Brasileira, 2021) aponta como o jogo intersubjetivo de humilhação subserviente dos(as) brasileiros(as) em relação às suas instituições públicas, por conta de nossos resquícios coloniais. Humilhados que, nesse caso, só mantêm a chance de ser exaltados se ficarem em silêncio.
Com outra candidata lesada, contratamos e pagamos advogado para os recursos administrativos. No entanto, o recurso de nosso advogado foi julgado intempestivo pela banca porque o prazo estabelecido em dias no edital foi tratado como se fosse determinado em horas pela banca. Notem que uma faculdade de direito é justamente o lugar privilegiado onde as pessoas aprendem a contar prazos, tarefa que está longe de ser das mais complexas na ciência jurídica. No entanto, a recusa, antes de certificar uma incapacidade técnica, apenas demonstrou a perversidade da banca e de seus membros, conluiados a conduzir o processo administrativo como um Brasil e Argentina onde se admite o irracional em nome de uma tradição violenta.
Fora a câmera fechada e o fato de que a orientadora de doutorado do “vencedor” era a única professora do departamento, fora os membros da banca, que misteriosamente entraram na sessão pública das provas didáticas, a anulação veio pela confirmação de amizade íntima entre o “vencedor” do certame e o presidente da comissão julgadora do concurso. Assim, administrativamente, o Conselho Superior da UFPR, buscando evitar que a discussão se judicializasse, anulou o concurso reconhecendo a amizade íntima (aqui), sensível ao print que mostrava o presidente da banca chamando o “vencedor” do certame de “orientando amado” nas redes sociais. A decis˜ão do Conselho foi uma espécie de placa erguida que diziam: “façam essa merda direito.”
Reconhecida a patota, lembrei de Sergio Moro, cria da UFPR e ex-juiz chamado de ladrão pelo deputado Glauber Braga, que passou legitimamente pela boca ácida da esquerda universitária por conta de sua notória imparcialidade nos processos de Lula. Talvez a República de Curitiba tenha alguma coisa ruim no ar, ou na água… Professores(as) federais que criticaram a imparcialidade e a politicagem de Moro, se, mesmo por omissão, comungam desse contexto de corruptibilidade atroz nas universidades, são mais parecidos com ele do que gostariam de admitir… Neste país em que polarizar é a moda tosca, fica fácil escamotear os vícios diluindo-os entre exércitos de gente que relativiza o não relativizável: seja a ditadura da Nicarágua, o genocídio de Bolsonaro ou corrupção da banda podre da esquerda universitária.
Nova banca formada e novo chamamento dos candidatos, seguiu-se o velho roteiro e o velho resultado, para espanto de um total de zero pessoas. Como um inédito Palmeiras que ganha duas finais de Libertadores no mesmo ano, o “vencedor”, que havia tido a coroa caçada, foi recolocado no seu injusto lugar de majestade.
Se até aqui os relatos de casos análogos são muito semelhantes, uma vez que a corrupção nos certames públicos nas universidades federais tem algo de endêmico, com as gravações que vieram pela popularização das reuniões on-line, elementos cruciais de denúncias como esta passaram a ficar ao alcance do público e, por isso, passíveis do julgamento do próprio público, que é quem merece a prestação de contas. Afinal, professores públicos são remunerados a partir de tributos pagos pela geral.
No minuto 14 da sessão de atribuição de notas da 2ª rodada do certame, de chofre, 4 dos 5 professores da banca alteraram as notas de um determinado candidato porque Freud estava certo quanto aos atos falhos, especialmente quando o pessoal das humanas tem que usar números e planilha Excel. Nada mais precisa ser dito. Cabe a cada um(a) conhecer detalhes da história, que está neste link, ou ver apenas o gran finale desta segunda temporada a partir do já citado minuto 14.
Como a dialética do malandro se estrutura sempre sustentada pela posição do(s) otário(s), cada concurso com carta marcada nas universidades federais tira para otário um número grande de pessoas: dos candidatos às suas avózinhas que rezam terços ingenuamente para que seus netos passem. Esta “ética do malandro”, diz Ricardo Goldenberg, “afinada com a corrupção crônica, infesta todos os estamentos da vida civil brasileira. Lado obscuro da fé cega de que sempre há de haver um jeito de driblar as regras em benefício próprio”.[8] Você é o otário porque parou sua vida, fez projetos, comprou passagens, reservou um airbnb, estudou bastante, se submeteu às pressões, cumpriu a tarefa infernal de organizar um lattes e pagou advogado para, no final, ser feito de pato.
É também notório que muitas das vítimas dessa endêmica corrupção, por medo, deixam de denunciar os casos pelos quais já foram vitimados. No Brasil de João de Deus, os crimes duram décadas porque nosso viralatismo nos impede de latir forte. Por isso fica aqui registrado este “latido”. É para exercer meu direito de cidadão e fiscalizador da moralidade pública que publico essa denúncia. É isto também um dever político, à parte qualquer posição ideológica ou partidária.
Se essas patologias sociais como a corrupção não são publicizadas quando passam diante de nossos olhos, pagaremos o preço da manutenção da chaga por conta da nossa própria omissão. Para que a esquerda universitária tenha moral para criticar o bolsonarismo, as trapaças neoliberais e o aparelhamento do Estado em benefício próprio, precisa enfrentar a questão da sua própria corrupção, que no limite é um julgamento parcial como o de Moro. Senão, vamos normalizar na educação brasileira a máxima do bolsonarista Luciano Hang: “se você disser que está tudo certo (com os certames nas universidades públicas), é mentira”?
PAULO FERRAREZE FILHO é professor, faz pesquisa de pós-doutorado em Psicologia Social na USP e é psicanalista em formação.
[1] BOECHAT, Walter (org.). A Alma Brasileira: luzes e sombras. Petrópolis: Vozes, 2014.
[2] ROMEIRO, Adriana. Corrupção e Poder no Brasil: uma história, séculos XVI a XVIII. Belo Horizonte: Autêntica, 2017, p. 13-39.
[3] MENEGHETTI, Diego. A origem de 35 expressões populares brasileiras. Superinteressante, 20 out. 2017. Disponível em: https://super.abril.com.br/especiais/nao-marque-touca-a-origem-de-35-expressoes-populares/. Acesso em: 01 dez. 2021.
[4] HOLLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p. 137.
[5] SOUZA, Jessé. A Elite do Atraso. São Paulo: Leya, 2017.
[6] SCHWARCZ, Lilia Moritz. Sobre o autoritarismo brasileiro. São Paulo: Companhia das Letras, 2019, p. 104.
[7] Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=6hKTjxysK6Y&t=214s.
[8] GOLDENBERG, Ricardo. No círculo cínico, ou, Caro Lacan por que negar a psicanálise aos canalhas? Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2002.
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