por Juan Manuel Domínguez e Paulo Ferrareze Filho

Jean Wyllys, ex-deputado federal pelo Rio de Janeiro, não conseguiu assumir seu terceiro mandato em 2019 por conta de ameaças de morte e linchamentos virtuais sofridos com a ascensão do bolsonarismo brasileiro.
Em outro contexto por conta de novos abortos de autoritarismo, Wyllys, assim como Marcia Tiburi e Débora Diniz, foram alguns dos exilados do regime bolsofascista.
O fato de que um governo, no jeito e nos gestos, propõe como estratégia de administração pública a violência, a perseguição de inimigos (ainda que vivos apenas em delírio), a intolerância mordaz e o silêncio como argumento contra o dissenso, não pode ser desprezado nessa tentativa de sutilização que dá novos contornos às forças ditatoriais no Brasil. É por conta dessas estratégias, que sabidamente já mataram uns e outras, que o exílio político foi redescrito pelo bolsonarismo.
Houve quem tenha desejado, com cega ironia, “boa viagem” à Jean Wyllys. No ar de nossos tempos, notícias (mesmo as fakes) conseguem reprimir com sutileza aquilo que as ditaduras conseguiam com tortura. Por isso Noam Chomsky afirmaque “a propaganda representa para a democracia aquilo que o cacetete significa para o estado totalitário” (Em Mídia: propaganda política e manipulação).
Não é demais lembrar que Wyllys teve uma carreira pública imaculada, fazendo esforços contra majoritários com pautas estranhíssimas para um parlamento conservador crivado de latifundiários, evangélicos evangelizadores e trogloditas simplistas que imaginavam e ainda imaginam, com suas cabeças de vento, que os dilemas do Brasil se resolvem na bala.
O coro que ironizou Wyllys foi entoado por um estranho exército que se amalgama em torno de um discurso tóxico de exaltação da virilidade. Se fossemos resumir: um exército de machos heterotop. Encarnações típicas de um conservadorismo besta: parciais na direção dos cuspes e inconscientes daquilo que fica no plano latente. Enquanto a fachada é de moralidade, respeito e retidão, na inconsciência pulula, sem que o dono perceba, uma ojeriza cultural encravada aos estereótipos contrários aos valores ingênuos que prega.
Para dar voz aos exilados no ar de nossos tempos, fomos atrás de Jean Wyllys para conversar sobre o contexto de violência institucional e social no Brasil conservador redivivo.
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1) Sua manifestação durante a votação do impeachment da Dilma deu voz aos brasileiros oprimidos, representou grande parcela da população e foi também prognóstica considerando os desdobramentos pós-2016. Por isso é digna de nota: “Eu quero dizer que estou constrangido de participar dessa farsa, dessa eleição indireta, conduzida por um ladrão, urdida por um traidor e conspirador; e apoiada por torturadores, covardes, analfabetos políticos e vendidos. Essa farsa sexista. Em nome dos direitos da população LGBT, do povo negro exterminado na periferia, dos trabalhadores da cultura, dos sem teto, dos sem terra, eu voto não ao golpe, e durmam com essa, canalhas.” No entanto, o dia da votação –também ficou marcado pelo cuspe que você deu em Bolsonaro. O que aconteceu naquele dia?
O que aconteceu foi resultado de uma violência que eu sofri por anos. Uma violência para a qual eu sempre respondi em de modo civilizado. O que aconteceu é que eu ali havia cansado. Eu sempre fui civilizado na resposta à uma violência que nunca foi civilizada. Uma violência que me destruiu como figura pública por meio de mentiras e fake news, uma violência que se colocava na forma de um insulto verbal em quase todas as sessões em que eu estava na Câmara com aquele sujeito. O que aconteceu aquele dia foi a minha resposta pelos anos de violência que sofri no Congresso.
Aquela reação não foi premeditada, ela simplesmente aconteceu. Eu não só não me arrependo como tenho o maior orgulho de ter feito a única coisa digna que rolou naquela noite.
Sobretudo depois das revelações do “The intercept”, sobre o que a Lava Jato de fato é, um complô, uma conspiração contra a democracia. Sobretudo depois dessas revelações, eu tenho mais orgulho ainda do que eu fiz naquele dia.
2) Como foi a sua decisão de ir para Harvard?
Primeiro, eu quero dizer que achei interessante, curiosa e surpreendente a reação dos brasileiros com o convite que eu recebi de Harvard para ser professor pesquisador. Achei curiosa porque eu passei por Universidades prestigiadíssimas na Europa, fiz conferência na Escola de Ciências Sociais de Paris, onde Bourdieu deu aula. Fiz outra no curso de literatura da Universidade de Tübingen, na Alemanha. Isso pra mim é mais motivo de orgulho do que o de estar na Universidade mais rica do mundo.
Harvard é a Universidade mais rica do mundo, mas não quer dizer que ela seja a melhor Universidade do mundo. Ela tem uma infraestrutura maravilhosa a disposição de quem pode produzir conhecimento, de quem quer aproveitar. Então, nesse sentido, sim, eu vou aproveitar. Eu fui convidado porque o Instituto afro-latino-americano de pesquisa tem interesse na pesquisa que estou fazendo sobre raça e gênero. Isso está me dando uma oportunidade de aprender. Por isso tudo estou aqui. Como professor visitante vou também aprofundar essa pesquisa. Ler livros, fazer revisão bibliográfica, conhecer outras pesquisas da área e dar conferências sobre os resultados. As aulas são justamente essas conferências.
Eu acho curioso o estranhamento porque eu sou um intelectual. O que eu sempre fiz foi ler, pesquisar e escrever. Eu publiquei meu primeiro livro em 2001 pela Fundação Casa de Jorge Amado. O livro ganhou o prêmio Copene de Cultura e Arte. Concluí o meu mestrado em entre 2002 e 2003. Depois criei uma pós-graduação em jornalismo e direitos humanos para a Universidade de Jorge Amado. Ou seja, a minha carreira inteira é intelectual, de quem sempre produziu pensamento. Como jornalista também trabalhei muito tempo na imprensa. Por isso tudo é que achei estranha a reação, a over reaction das pessoas com o fato de eu ter vindo para Harvard. Essa reação certamente tem algo a ver com o colonialismo de parte do pensamento brasileiro, com certo complexo de vira-lata.
3) Certamente para os bolsonaristas que te reduzem a um ex-BBB, de orientação sexual demonizada por velhas religiões, foi espantoso saber que você estava indo para Harvard. Isso porque, no imaginário da classe média conservadora, Harvard é mais uma grife bacana do mercado neoliberal do que um lugar de produção do conhecimento. Não fosse assim, talvez a reação fosse outra. Fato é que, venha de Harvard ou da USP, o conhecimento e a ciência, especialmente as ciências humanas, se tornaram não só descartáveis, mas também espúrias com o bolsonarismo. Como você percebe a ascensão do anti-intelectualismo no ar dos tempos brasileiros?
Todo fascismo é anti-intelectual. Toda vez que o fascismo ganhou espaço na esfera pública e conquistou governos, manteve uma postura anti-intelectual, contra o pensamento, contra a filosofia, contra as artes, “contra a vida com pensamentos”, para usar uma expressão de Hannah Arendt. O fascismo é o vazio do pensamento, a renúncia a pensar. Essa renúncia deliberada a pensar gera inveja por quem continua pensando, por quem se dispõe a pensar, por quem usa a lógica, por quem argumenta e trabalha a partir de argumentos.
Essa gente que tomou o poder no Brasil, essa ultradireita bolsonarista e particularmente pessoas que integram o governo de Bolsonaro, são fracassados, são loosers do ponto de vista intelectual, são pessoas que fracassaram em suas carreiras acadêmicas, que foram péssimos alunos por preguiça, porque provavelmente oportunidade eles tinham, privilegiados eles eram, mas não queriam se dedicar a tarefa de pensar. Então eles fetichizam essas pessoas, fetichizam a Universidade de Harvard como um ideal de Universidade. Por isso algum deles teve que mentir que tinha alguma ligação com Harvard…
4) Como educador que você é, como poderia explicar no que consistem os direitos humanos, especialmente para as pessoas que pensam que os direitos humanos são apenas um mecanismo de proteção de bandidos?
Essa questão é um desafio. De fato, é preciso encontrar a melhor maneira de dialogar com as pessoas que não estão na academia e que não estão nos círculos intelectuais.
A ideia de direitos humanos que nós temos hoje, essa ideia dos direitos humanos como pertencentes a todos os humanos, como algo a ser defendido por todos nações, nasceu com a Declaração Universal dos Direitos Humanos, que foi um pacto das civilizações após o horror das duas grandes guerras do século XX. A segunda guerra foi precedida pela emergência dos fascismos na Europa. Nunca é demais lembrar de toda violência que os judeus sofreram, primeiro, nas ruas ao ter suas lojas quebradas. Depois da expulsão deles da Alemanha. Não é demais lembrar que os judeus foram impedidos de pensar e produzir pensamento, foram perseguidos nas Universidades, assim como artistas foram impedidos de criar, homossexuais foram perseguidos e boates gays foram fechadas. Até que eles encontraram a solução final para o dilema da purificação da raça ariana: matar os outros. O holocausto foi isso. A noção de direitos humanos universalizáveis surge depois desse horror de 6 milhões de pessoas mortas.
Mais tarde os direitos humanos se afirmaram como direitos indivisíveis, ou seja, direitos econômicos, direitos culturais, direitos sexuais – para ficar apenas nesses – devem ser protegidos sem hierarquia. É um equívoco e uma estupidez a ideia de que os direitos humanos servem apenas para defender bandido. Isso é má-fé da ultradireita. Eles deturpam porque são racistas. Em geral acham que quem comete delitos não deve ter direitos, mas não entendem fenômenos como o racismo e o sexismo que estão implicados necessariamente nesse debate. No entanto, quando essas pessoas falam de si mesmas ou de seus filhos, querem o direito a um julgamento justo.
Vou dar um exemplo: um rapaz de classe média, dirigindo a Cherokee do seu pai, bebe em uma noite de festas e atropela alguém porque bebeu. O pai e a mãe querem que esse filho tenha um julgamento justo. Que seja levado em conta que ele não tinha antecedentes criminais, que ele era um bom aluno, enfim, que ele cometeu um delito, o erro de beber e dirigir e que, por ter errado, matou pessoas acidentalmente. Os pais desse rapaz querem que o filho tenha um julgamento justo para que ele possa recomeçar a vida dele. Então eu pergunto: se esse rapaz tem direito a um julgamento justo, por que é que os pobres não têm direito? Por que que as pessoas acham que quando um pobre comete um delito não tem direito? E olha que o delito da maioria dos pobres é um contra a propriedade. Claro que também há pobres que cometem delitos contra contra a vida, assim como há ricos atentando contra a vida, há ricos cometendo delitos. Vejam, por exemplo, a Lava Jato e todos os delitos cometido pelos procuradores da Lava Jato: como é que esses delitos vão ser julgados? A gente vai considerar essas pessoas como bandidas? E se a gente considerar que elas são bandidas, e elas são bandidas, a gente vai defender que bandido bom é bandido morto? Não! Porque no Brasil não tem pena de morte. Porque o Brasil é um país que aboliu a pena de morte ainda no segundo reinado, no reinado de Dom Pedro II. Ou seja, não temos pena de morte no Brasil. A polícia não tem o direito de matar pessoas nos vácuos da legalidade, as pessoas tem direito a um tratamento, a um julgamento justo. As pessoas tem direito a uma pena justa, a cumprir essa pena e retornar para a sociedade. É isso que a gente defende, e isso não é defender bandido, isso é defender que todas as pessoas tenham um direito. Todas! Todas! As ricas, as de classe média e as pobres. O problema da classe média e dos ricos é achar que os pobres não têm esse direito, é achar que para pobre tem que ter pena de morte, que o delito é sempre o que o pobre comete. Aliás, esse tipo de pensamento hipócrita é um clássico no Brasil: quando alguém da classe média ou alta pratica suas fraudes, sonegação de impostos, pagar policiais para não ser multado ou comprar vagas em vestibulares para o filho, está apenas cometendo um erro; mas se desaparecer alguma coisa em casa a empregada doméstica será sumamente condenada a ladra.
É preciso entender, portanto, que os direitos humanos protegem a todos nós.
5) Como foi a experiência de se tornar deputado federal em um congresso conservador, dominado por homens brancos e desatentos às questões de gênero?
Eu escrevi sobre isso no meu novo livro O que será. No livro eu detalho sobre como a minha figura no cenário político brasileiro provocava um ruído não só na direita e na a extrema direita homofóbicas, mas também em setores dos partidos de esquerda que são igualmente homofóbicos. E uma prova disso é que estão habituados a colocar gays e mulheres em lugares subalternos. Por exemplo, fui convidado pela esquerda israelense para fazer uma palestra na faculdade Hebraica de Jerusalém sobre homofobia, antissemitismo e islamofobia. Conheci assentamentos palestinos e lideranças, tanto palestinas quanto israelenses. Minha posição era clara, auxiliar numa solução preocupada em diminuir a resistência de dois estados soberanos com o objetivo de fazer cessar o programa colonialista de Israel na Palestina. Estava claríssimo qual era o objetivo do programa e do porque eu ia para Israel. Assim como, repito, estava claríssima qual era a minha posição em relação a questão da Palestina. No entanto, setores do PT, do PSOL e do PCdoB fizeram uma campanha ordinária, difamatória, odiosa contra mim, deturpando as minhas posições em relação ao conflito, me acusando de sionista, de veado sionista, dizendo que eu me vendi à Israel. Recuperavam um antissemitismo medonho, a ideia de que judeus controlam o mundo e que, portanto, são responsáveis pelos males do mundo, uma teoria conspiratória que já embasou o nazismo. Ou seja, era parte da esquerda repetindo essas coisas. Aquelas pessoas não estavam sendo apressadas ao julgar, elas estavam agindo de má-fé. Pessoas de esquerda esperando o momento de botar para fora o ódio que elas recalcaram pelo fato de eu ser um gay reivindicando igualdade radical entre os heteros, cisgêneros e a comunidade LGBT, reivindicando uma igualdade radical de acesso aos direitos. Essas pessoas estavam incomodadas com o fato de eu ser um gay que estava dentro, no cenário político, assumindo uma posição de destaque que até então só homens e homens brancos ocupavam. Eu era um homem gay falando de igual com figuras políticas, masculinas, heterossexuais, brancas e cisgêneros que dominavam a política. Era alguém que não se contentou em ficar no lugar específico da luta LGBT, era alguém que tratava de economia no país, foi uma pessoa que assumiu a voz contra o impeachment da Dilma no momento em que pouca gente fora do PT admitia que era um golpe.
O ataque do Ciro à Marcia Tiburi, por exemplo, é um ataque despropositado. Ele não precisava evocar uma palestra da Marcia Tiburi em que ela tem um pensamento sofisticado sobre a questão da sexualidade e, dali, pinçar uma frase solta para dizer que ela era o exemplo do que o eleitorado não queria. Ele não precisava fazer isso. Eu dei uma reposta a ele que o atingiu em cheio. Então o que é que ele e o partido fizeram? Ao invés de o Ciro me responder, usaram uma transexual do partido que eu nem conheço para mentir sobre mim nas redes sociais, para inventar estórias, para repetir fake news a meu respeito. Uma das fake news é essa estória da minha visita à Palestina, à Israel e à Palestina, por exemplo. Nesse momento em que as esquerdas precisam conversar e dialogar, Ciro se presta a atacar a Marcia Tiburi para dialogar com setores conservadores e reacionários da sociedade. A minha pergunta é se Ciro vai repetir o erro e seguir o mesmo caminho do bolsonariso?
Quero construir um espaço de esquerda no Brasil que inclua a comunidade LGBT e os grupos difamados. Ou a gente vai ficar nessa retórica de parte da esquerda, em pleno século XX, que sustenta que primeiro temos que resolver a desigualdade social para depois dar a atenção às questões indenitárias? Não se pode pensar hoje em justiça social no mundo, sem se pensar nas questões indenitárias e ambientais, ou seja, esse discurso precisa ser revisto. Mesmo assim, ele está na boca das lideranças masculinas e heterossexuais da esquerda no Brasil, que não admitem o que eu trago de novo em termos de debate e questionamento.
6) Vai nessa mesma direção a falta de autocrítica de parte da esquerda no que tange à Venezuela?
Fui um dos primeiros críticos do que estava acontecendo na Venezuela. Não era porque Maduro se autoproclamava de esquerda que eu ia fechar os olhos para as violações de direitos humanos que estavam sendo praticados por esse governo. Como o espaço da democracia estava sendo restringido, eu não poderia fechar os olhos pra isso. Não há nenhuma aliança de esquerda que me permita fazer isso, porque eu sou uma pessoa justa, porque eu estou do lado da justiça. A gente tem que fazer crítica ao intervencionismo americano? Temos. Temos que criticar o boicote econômico americano? Temos. Mas vamos nos perguntar quais foram as relações econômicas, em termos de negociação de petróleo que foram desfeitas entre a Venezuela e as companhias americanas? Quais foram? A gente precisa ser crítico do colonialismo imperialista americano? Sim, mas isso não significa que temos que fazer aliança com governos autoproclamados de esquerda que violam os Direitos Humanos. A direita Venezuela é abjeta? É. Mas não mais abjeta do que a extrema direita brasileira.
Eu não faço média, eu não quero preservar a popularidade pela popularidade. Então, por exemplo, eu defendo a legalização do aborto, não me importa se tem gente que vai deixar de gostar de mim porque eu defendo a legalização do aborto. Eu tenho argumentos para dizer porque eu defendo a legalização do aborto e um desses argumentos é a vida das mulheres. É o fato de que a taxa de aborto cai quando o aborto é legalizado, portanto, é uma defesa da vida. Eu tenho argumento para dizer porque eu defendo a legalização do consumo e do comércio hoje ilegal de maconha, tenho argumentos sólidos, posso debater e por isso não vou mudar de posição porque as pessoas têm preconceito sobre esses temas, não têm leitura, não têm conhecimento. O mesmo acontece em relação à questão israelense na Palestina. Ou seja, eu não vou mudar minha posição porque existem ignorantes de esquerda no Brasil que não sabem distinguir sionismo de judaísmo. Pessoas que não sabem que existe sionismo de direita e de esquerda, que não sabem que nem todo judeu é sionista e que nem todo israelense é judeu, ou que há judeus palestinos dentro de Israel. Eu não vou voltar atrás nas minhas posições porque existem antissemitas e burros na esquerda.
7) Já que voltamos a falar sobre a Palestina, como você percebe a homofobia lá?
Essa é outra questão complexa. Quando eu estive lá, fui à Súcia, fui à Belém, estive nos assentamentos em Jerusalém. Claro que fui aconselhado a não ir porque, como queria ir à Faixa de Gaza, sabia que enfrentaria naquela região a homofobia do Hamas. Eles são radicais islâmicos, são fundamentalistas que não admitem a homossexualidade, da mesma maneira que os fundamentalistas cristãos ou judeus também não a admitem. Ou seja, os fundamentalistas das três religiões do Livro, o judaísmo, o cristianismo e o islamismo, não admitem a homossexualidade e são, portanto, homofóbicos.
É por essas coisas que não se pode falar em justiça social hoje desprezando questões identitária ou questões de gênero. Por isso é equivocado que alguém se autoproclame de esquerda e seja indiferente a essas questões, ou mesmo à questão ambiental. Não se pode discursar contra a pobreza econômica sem compreender o sofrimento de determinadas posições de sujeito, como diz Pierre Bourdieu.
Olha que coisa curiosa: eu sou contra o colonialismo israelense em terras palestinas e contra a resposta beligerante e desproporcional do militarismo de Israel. Ou seja, mesmo alguém que é favorável à causa palestina não pode ir sossegado para a Faixa de Gaza porque o Hamas é homofóbico. Isso sem esquecer que Israel não é homofóbico, ao contrário, Israel tem organismos não governamentais que dão abrigo à gays que fogem da Palestina por causa da homofobia. Há casais inter-étnicos, ou seja, casais gays formados de judeus e palestinos em Israel. Não se pode cair em uma polarização ridícula, infantil e contrária à reflexão.
8) Há um escritor chileno, um grande amigo de Bolaños, que se chama Pedro Lemebel. Entre 1986/87, ele escreveu um poema que se chama “Manifesto”. Ele foi um homossexual do Partido Comunista (PC) durante a ditadura de Pinochet, que sofreu diversos episódios de homofobia inclusive dentro do próprio PC. Uma das frases desse poema diz: “não fale a mim de revolução, companheiro, que ser bicha e ser pobre é ainda pior”. Quais são as situações que ainda agravam a tua marginalidade?
Os pobres, os pretos e os moradores das periferias, por exemplo, são vítimas de uma violência e de um terrorismo de Estado que se materializa, entre outras, na guerra mentirosa às drogas, que, na verdade, é uma guerra aos pobres. Todos estão, portanto, mais ou menos vulneráveis de acordo com a classe social a que pertencem. Todos estão mais ou menos vulneráveis pela etnia e pela cor da pele. No fundo, nessas comunidades pobres há uma violência perpetrada contra essas pessoas porque elas são percebidas como inferiores. Essas vulnerabilidades se intensificam ainda mais quando se trata de gays, de lésbicas e de transexuais. Isso porque dentro dessas comunidades atuam igrejas evangélicas homofóbicas.
Claro que esse debate não é novo. Foi só quando psicanalistas judeus fugiram da Alemanha nazista e se estabeleceram nos Estados Unidos, que essas questões de sexualidade e de gênero passaram a compor a agenda das esquerdas. Já nessa época foi problemático porque a esquerda não queria tratar das questões de sexualidade e de gênero. Por isso volto a dizer: ainda há muita homofobia na esquerda.
Eu gostaria que a gente pensasse em Monica Francisco como a candidata à prefeita e Marcelo Freixo como vice em 2022, por que não? Por que que ainda tem que ser o contrário? Eu adoro o Haddad, acho o Haddad incrível, maravilhoso, mas será que não vai surgir uma candidata que possa representar uma mudança no mundo capaz de politicamente empoderar as mulheres? Será que a gente vai sempre ceder aos preconceitos das massas para conseguir dialogar com elas? Não. Há outras saídas, há outras formas de descontruir os preconceitos das massas. Não é nada contra o Marcelo Freixo ou o Haddad. Marcelo Freixo é meu amigo, não estou falando dele, mas de como nossos pensamentos estão tomados e colonizados de tal forma que a gente pensa automaticamente que só tem uma saída. A Monica Francisco é uma mulher negra que foi agente de saúde em comunidades pobres, que tem ligação com uma igreja evangélica que não é neopentecostal. Por que ela não pode ser prefeita? Por que que ela não pode ser uma candidata e ele ser o vice? Há grandes prefeitas em metrópoles mundiais como Anne Hidalgo em Paris e Ada Colau em Barcelona. Essa é uma provocação que eu tenho feito.
9) Nos parece que se trata de uma luta contra o maniqueísmo. Você acredita que existe esse maniqueísmo moral também naqueles que se autoproclamam de esquerda?
O perigo do fascismo nos ronda. E temos que tomar cuidado para que a esquerda não caia em posições quase fascistas, dogmáticas ou religiosas. A gente não pode permitir isso. Ou seja, Marx não pode virar uma religião. Eu sempre digo isso a partir de um livro maravilhoso do Jacques Derrida chamado Espectros de Marx. É preciso lutar com Marx, sem Marx e, às vezes, contra Marx. É preciso lutar com Freud, sem Freud e, às vezes, contra Freud. Falo da psicanálise porque, apesar de ela ter muito a nos dar como instrumento de interpretação da cultura, é também passível de crítica, sobretudo quando ela é convertida numa prescrição normativa por psicanalistas que, em seus consultórios, propugnam uma heteronormatividade como solução para problemas de gays vítimas de homofobia. Dou esse exemplo para mostrar que há momentos em que a gente tem que lutar contra a psicanálise, sobretudo contra as formações precárias de psicanalistas em escolas ruins de psicanálise comandadas por alguns evangélicos. Isso quer dizer que eu vou abandonar todo o edifício da psicanálise? Não, a psicanálise, sobretudo os textos de Freud, são incríveis. É óbvio que ele não poderia tocar em questões não permitidas em sua época. O mesmo se dá com Marx. A teoria marxista é muito interessante como crítica do capitalismo, mas tem uma série de questões que a teoria marxista não compreende porque não eram questões de sua época.
O mesmo vale para o cristianismo, que deve ser problematizado, criticado e também elogiado naquilo que puder servir a projetos políticos. Nesse sentido, a comunhão cristã, da lógica de repartir o pão, de horizontalizar as relações, de dar voz e ouvidos e toda essa tradicional tecnologia de convivência também pode servir para a esquerda rever seus próprios preconceitos.
É simplesmente essa complexidade que eu reclamo e que eu tento combinar com a política. Por isso tento associar a figura do ativista e do representante político com a do intelectual, do escritor, do artista. Sou essa figura que mescla tudo isso. Eu adoro mesclar tudo isso, borrar essas fronteiras e trazer uma reflexão mais ampla para as pessoas.
10) Por fim, gostaríamos que você falasse um pouco da tua trajetória. Da trajetória de alguém que saiu da periferia e que hoje ocupa lugar de destaque na academia e na vida intelectual brasileira.
Sabemos que há uma concentração de riqueza na mão de poucos. A tendência da pobreza é se reproduzir. Uma família com muitos filhos, que vive na pobreza, passa fome. Quando os filhos não morrem cedo de desnutrição, de desidratação ou de outras complicações, é natural que acabem indo muito cedo para o mercado de trabalho informal. Trabalham para ajudar a família toda a não morrer de fome. Nesses casos, que não são poucos no Brasil, a necessidade de trabalhar impede essa pessoa de estudar de maneira séria. Dividir o tempo entre estudo e trabalho não é bacana, quer dizer, prejudica o desenvolvimento escolar. A pobreza vai produzindo danos irreparáveis, vai impedindo que as pessoas desenvolvam suas habilidades, seus talentos. Esse cenário joga essas pessoas em subempregos e, a partir daí, elas não têm como se colocar no mundo do trabalho de outra maneira.
Esse era o destino que estava reservado para mim. Até que a presença da esquerda católica nas periferias, nas comunidades eclesiais de base orientadas pela teologia da libertação, mudou o meu destino. O fato de eu estar na catequese desde cedo foi me abrindo os olhos para um mundo de injustiças que iam da desigualdade e da fome à homofobia.
Eu trabalhava e estudava. Fiz a oitava série no noturno porque eu trabalhava durante o dia como menor aprendiz da Caixa Econômica. Apesar da miséria em que eu vivia, apesar da fome que eu passava, eu resistia sendo um excelente aluno. Uma professora me indicou o Colégio Técnico da Fundação José Carvalho na cidade de Pojuca/BA, que era uma escola de excelência e que tinha um vestibular super rigoroso. Ser aprovado nessa escola ajudou a mudar minha vida. Fiz informática e me formei em processamento de dados. Isso me permitiu uma colocação no mercado de trabalho como programador de computador. Isso me fez mudar para Salvador com um emprego, embora eu tenha chegado em Salvador e ido morar na periferia, num lugar hoje chamado de Tancredo Neves, mas que na época se chamava Beiru, um lugar de muitas pessoas, de muita pobreza e com todas as violências que infelizmente são comuns nas periferias.
Quando fiz a FACOM na UFBA, que também era muito concorrida na época, não havia nenhuma política afirmativa. Foi um grande desafio entrar nessa faculdade que tinha o segundo curso mais concorrido da época. Depois que me formei em comunicação e jornalismo, entrei no mestrado e aí pintou a história do Big Brother. Eu fui para o Big Brother por alguns motivos. Entre eles havia uma curiosidade acadêmica sobre um programa que era um fenômeno de audiência que era desprezado pelas elites intelectuais. Acabei vencendo o programa – isso estava fora do meu script – e fiquei famoso.
Essa fama, por si só, foi sempre muito utilizada para me desmerecer e para desmerecer a minha formação intelectual. Sobrevivi a elas, inclusive à própria resistência do PSOL quando eu me filiei. O PSOL ainda é um partido com um ranço elitista muito grande, sobretudo no Rio de Janeiro. Já mudou muito, se abriu para muita gente diferente, inclusive para as meninas pretas. Marielle é um símbolo dessa abertura e dessa mudança, mas o partido tinha esse ranço, como também tem no PT, no PCdoB e na esquerda que não gosta de ler livro, que não conhece literatura, que não lê os clássicos da literatura, que não conhece nada, mas que gosta de falar mal do Big Brother e do consumo cultural dos pobres.
Como eu consegui, acho que é bacana para as pessoas que são da periferia e que tem origem igual a minha, ver que também podem. Que elas podem estudar e se inserir no mercado de trabalho, que elas podem ter mais de três refeições diárias, que podem ser pesquisadores e que aprender línguas não é um privilégio só de brancos de classe média.
Entrevista de Juan Manuel Domínguez
Apresentação e edição de Paulo Ferrareze Filho
JUAN MANUEL DOMÍNGUEZ é escritor, ativista, professor, jornalista, roteirista e diretor de cinema
PAULO FERRAREZE FILHO é professor, pesquisador e psicanalista em formação
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