por Tainá Machado Vargas e Regis Fernando da Silva

Uma nova forma de satisfação consumista no futebol também foi designada a partir do registro de necessidades especiais de torcedores durante a quarentena. Com os estádios vazios, instalaram-se instabilidades não apenas no modelo econômico do futebol europeu. Hoje, o torcedor e o futebol não se limitam mais às incompatibilidades do tempo, a dificuldade de ‘estar juntos’ e a busca por respostas emocionais ligadas ao ambiente físico dos estádios. Através do aprimoramento dos artifícios tecnológicos e virtuais, ampliam-se também as coberturas esportivas e, a partir destes, desejos que disciplinam sujeitos e novos rumos lucrativos para o mercado internacional do futebol. A proposta é garantir a satisfação e o entretenimento imediato do público, sem poupar dimensões terminativas para concretizá-los. Foi o que aconteceu com o caso do esquadrão de ‘torcedores de papel’ personalizados, que preencheram as arquibancadas no lugar dos de verdade. Ainda que de forma rudimentar, a ideia parece ter dado certo em termos de arrecadação. Talvez, em breve, seja possível incrementá-los com recursos de áudio, voz e câmeras com transmissão remota via celular em tempo real. A ambiguidade está nas conexões que criamos. Ela substitui alternativas à presença física e concreta de celebrar fanatismos junto de nossos ídolos. Coisas que há muito a crise da pandemia nos privou.
Se antes, o tempo do esporte era ajustado pelo hiato do imprevisível, dos riscos e prejuízos físicos, hoje, ele é infinitamente diminuído pela prevalência da alta tecnologia médica, do aperfeiçoamento da tecnicidade esportiva, executada com grande eficiência internacional. Este avanço incendeia as competições entre os campeonatos do mundo todo e faz crescer consideravelmente o fluxo de investimentos também. Esse é o principal motivo que explica a criação da Super Liga Européia: a lucratividade.
O esporte cumpre bem com a sua funcionalidade de interpretar a metáforas da racionalidade neoliberal, isto é, em recuperar dialeticamente raízes à prova do sucesso e do fracasso como lados opostos de uma única experiência – não apenas subjetiva, mas coletiva – em conceber a vitória e a derrota como significantes ideológicos. Isto quer dizer que, ao conceber a financeirização do esporte como um modelo político de inspiração psíquica, auto vigilante, pressionada por rendimentos, a dinâmica do futebol – tal como a da vida guiada pela racionalidade econômica – vêm igualmente organizando formas de existir, de acordo com os estados de competição permanentes. Dentro e fora do futebol, faz parte do ritual dos jogos espelhar-nos em parâmetros de força, de superação e comprometimento com a positividade. É como se nossas habilidades intelectuais e profissionais passassem pelo mesmo modelo de treinamento sofisticado da auto exploração e do desempenho. Para isso, é preciso aprimorarmos uma tecnologia simbólica, capaz de aprisionar os sentidos da vida, todos voltados ao trabalho.
A imparcialidade com que saboreamos identificações na vitória ou uma virada épica do time que está prestes a entregar o jogo aos seus adversários, aos 45 – (quarenta e cinco minutos do segundo tempo), materializa em nós a possibilidade econômica de inversão de afetos para um gozo de superação momentânea. Há instantes de ficção no esporte em que ele é capaz de emocionar genuinamente, de nos suspender da precariedade da vida e guiar nossa consciência para longe dos desajustes progressivos entre o capital e a renda ou da desertificação financeira no mundo do trabalho, por exemplo. Crises ligadas ao desempenho físico e mental que não poderíamos sequer nos prevenir ou se defender diretamente, de algo que dá ares de uma ameaça social invisível.
Para muitos, o futebol é um alívio que reequilibra as perspectivas do nosso fracasso particular: é uma arena onde se torna permissível acolher o fracasso e vibrar com a catarse da vitória entre uma multidão de iguais. Ao contrário do que nos é vendido, quando passamos a não mais invalidar o fracasso, este passa a protagonizar tudo o que é contra ideológico, contra normativo, à medida que só o que importa é se perceber como um vencedor. Veja bem, não se pretende com isso, investir tempo argumentando contra a ética protestante do Life-coaching, mas sim, encontrar sentidos na reminiscência de um sentimento de ‘falha’ que em nada parece acrescentar ao crescimento humano. Quando dialogamos mais sobre o fracasso e a forma como o encaramos (como privação, insuficiências), isso nos ajuda a decifrar muito sobre a toxicidade das nossas apostas sobre o futuro, e sobre a competitividade das relações que mantemos diariamente. Seja pela televisão ou nos estádios, é como se fossemos, em parte, co-vencedores em pleno estado de arte nos estádios. A torcida e o torcedor, configuram essas combinações essenciais entre o conhecimento e a memória, a exigência pelo aperfeiçoamento técnico dos jogadores, a estabilidade emocional e as ferramentas disponíveis para a materialização de talentos – como se os jogadores fossem avatares financiados – à espera por realizar grandes expectativas esportivas. Ao contrário da vida, no futebol, o fracasso pode ser recusado, e a perspectiva da ruína pode estar subentendida tanto no triunfo quanto na derrota, em um mundo que só se interessa pelo desempenho dos campeões.
Se o fracasso como experiência pré-conhecida no futebol é entendida como uma ação subalterna, a vitória representa a somatória de seus ideais utópicos, suscetíveis (o tempo todo) a testes de falha e a inconclusas fases de vitória. Considerando que o modelo do sucesso assume versões movediças, não-estanques, que também capturam novas formas de dissidências, iguais as da vida, seria possível encontrarmos, bem no fundo de nossos fracassos, elementares que possam, verdadeiramente, constituir metáforas e experiências políticas de subversão para o futebol? Assim como no jogo, a vida assume o controle das prioridades nos gramados. Em destaque, a exemplo da Superliga, a resistência dos ‘clubes-celebridades’ às investidas econômicas de um campeonato que retira a diversidade das disputas, em detrimento do lucro arrancado de grandes clubes nos eventos mais caros do planeta.
Os ‘times-empresa’ e a alta rentabilidade está fraturando o futebol
Grandes clubes só existem em razão do trabalho árduo dos clubes médios e pequenos, fundamentais para revelar jogadores e alimentar a cadeia de performances nos campeonatos locais. São os clubes menores que fornecem uma parte considerável de atletas para a formação de grandes times nas competições. Os campeonatos nacionais, as divisões de acesso, às copas intercontinentais, todas essas competições que acabam revelando jogadores importantes que são, naturalmente, selecionados pela ordem evolutiva do futebol. O ápice desse sistema funciona como uma pirâmide, também conhecida como Champions League. O papel das seleções mundiais durante as copas do mundo também tem o condão de localizar grandes ídolos e transformá-los em celebridades mundiais.
A relação direta entre a financeirização neoliberal do esporte e a globalização, desde o início dos anos 80, compôs uma elite de castas esportivas formada por super clubes, a fim de priorizar o controle hegemônico sobre o mundo do esporte. A criação desse sistema de normas internacionais esportivas, de modo geral, funcionava como uma cadeia produtiva que intensifica e abastece desigualdades. Este alinhamento do esporte aos entraves econômicos seguiu os rumos das políticas neoliberais, já então consolidando-se (com certa resistência dos países latinos) na economia e nos sistemas jurídicos, à mesma época. Os Estados nacionais passaram a exercer menor influência política enquanto as corporações transnacionais recebiam maiores influências na economia. À medida que esse controle foi se estabelecendo, a globalização criou um ciclo de vida cada vez mais previsível às formas de retorno de investimento. Mais fácil se tornou enriquecer e sobressair como vencedores nas competições.
Atualmente, o corporativismo do esporte já está institucionalizado à lógica de uma ética empresarial predatória, a tal ponto, que muitos clubes internacionais passam a funcionar sob o status operacional de uma verdadeira empresa: Um time chamado “Clube Você S.A”. No lugar de conselhos deliberativos do esporte e associações civis sem fins lucrativos, – como ocorre no Brasil – na Europa, há clubes gerenciados por bancos investidores, grandes corporações, patrocinadores, acionistas etc. O formato destes ‘clubes-empresas’ de capital aberto, lançam cotações milionárias até na Bolsa de Valores de Nova York.
O primeiro deles é a participação de grandes marcas e patentes assumindo posições estratégicas de acionistas-funcionários, como acontece no clube ‘RB Leipzig, na Alemanha, na Áustria e no Brasil, (onde a companhia Red Bull já administra mais de um clube). Outros times que também passam a carregar o nome da empresa, e são identificados pelo nome corporativo: o ‘Bayer Leverkusen’, o ‘Bayern de Munique’, e o ‘Wolfsburg’, com capital 100% – (cem por cento) pertencente à empresa ‘Volkswagen’. Milan, um dos clubes mais tradicionais da Itália acabou sendo incorporado ao patrimônio do banco Hedge Fund Elliot Advisors, devido a sucessão de inadimplências e escândalos políticos ligados a ex-proprietários (como Silvio Berlusconi e ao grupo Chinês que o comprou e foi à falência). Aos banqueiros que figuram como ‘donos-investidores’, fica claro que não resta qualquer outro interesse que não seja multiplicar grandes fatias dos contratos e firmar acordos de compra e venda bilionários a partir da comercialização de clubes e jogadores como produtos de alto valor.
De outro lado, está o apagamento da tradição de alguns clubes que promovem acirramentos entre os seus torcedores. Estes, observam a comercialização de transpasses de jogadores entre clubes, a transformação destes em grandes empresas e fundos de investimentos e em produtos exclusivos de mídia publicitária. Inclui-se também, por finalidade de ocasião, o esporte como pretexto para hábeis negociatas ao encobrir esquemas de lavagem de dinheiro. Nesse processo, o futebol está abandonando o seu legado popular ao alterar a formação da arquitetura original dos estádios e o encarecimento dos valores repassados aos torcedores. Se a criação da Superliga Europeia se concretizasse, tornaram-se intensivas essas desigualdades, além de potencializar os efeitos consequentes da elitização que já existem…
O futebol corre o risco de ficar à mercê de um processo análogo a NBAzação. Isto é, desassociar identidades do futebol afeta as suas raízes antológicas e os significados da própria celebração. Transformar o futebol em uma celeuma lucrativa, em uma fonte de investimentos bilionários, é promover o apagamento da cultura popular. Naturalmente, este fato implica em dinamizar íntimas relações entre torcedores e seus praticantes.
A proposta da Super Liga não atrai justamente porque se recusa a elaborar o fracasso da sua baixa popularidade entre os torcedores e a falta da diversidade dos times menores em escala de ascensão conhecida, como parte de toda e de qualquer cultura competitiva que satisfaz multidões em partidas comoventes. No entanto, o boicote à tentativa de criação da Super Liga se revela subversivo à medida em que se propõe denunciar as invulnerabilidades econômicas da agência do capital sobre o futuro fértil do futebol. Ao recusarem participar da Superliga, vários times e jogadores se propõe ao experimento de desafiar o poder imperialista sob a égide neoliberal, divulgando a precariedade de suas contradições, demonstrando que quanto mais se busca levantar castas entre as torcidas e elitizar seus regramentos com produtos e serviços adicionais, mais se fracassa em atender as expectativas do grande público. Disputar a territorialidade dos estádios e do futebol como domínio público, cultural mundial, representa defender posições políticas que nos são solapadas, dias após o outro. A dissidência do apoio dos torcedores à Superliga é contra hegemônica como um revanche popular, celebrado a partir de novas aproximações entre os clubes, torcedores e praticantes. Isso importa em relutar a um sentimento de desorientação econômica do sentido da vida, ligado, simultaneamente, à perda objetiva das instituições sociais como referência popular. Mais do que isso, representa a perda de um lugar subjetivo na memória do torcedor sobre as origens e a estrutura social do esporte. Nesta partida, a UEFA saiu vencedora, mas e o próximo passe?
TAINÁ MACHADO VARGAS é mestra em Sociologia do Direito pela UNILASALLE/RS e faz pesquisa pelo CNPq sobre trabalho, gênero, política e neoliberalismo
RÉGIS FERNANDO DA SILVA é mestre em Direito pela UNILASALLE/RS, advogado e pesquisador
REFERÊNCIAS
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