por Paulo Ferrareze Filho

Lembremos que previdência remete à prevenção, a prever, a antever, a avaliar causas e consequências para saber antes, para acessar uma informação privilegiada que vem, através de cálculos, do futuro.
Mas afinal, se previdência é isso, o que é preciso juridicamente prever? Para quem é necessário prever? Quando e até quando é possível prever? Em que quantidade é possível prever? Quanto cada qual deve receber?
Foi com Drummond, um literato, no livro Contos Plausíveis, e não com as mil aulas de metodologia, que aprendi essas regras fundamentais de qualquer pesquisa.
Se estamos em um congresso de direito previdenciário, talvez a grande tarefa desse grupo imenso de pesquisadores seja tentar responder a estas perguntas fundamentais:
O que é possível prever? Lhes respondo: vida digna. A dignidade parece um conceito complicado, mas não é, especialmente para quem não goza de nenhuma: comida, casa, roupa, saúde e educação talvez possam resumir essa ópera. Nem precisaremos de muita segurança se essas coisas de antes forem bem calculadas. Mas lembremos, não se constrói dignidade coletiva enquanto há gente tomando vinhos R$ 35 mil e jogando notas de R$50 de um iate à beira mar.
Para quem é necessário prever? Para todos, mas especialmente para os mais pobres. Quanto mais pobre, a ele mais se deve não só prever quanto prover, sem descuidar, no entanto, de garantir o maior resultado para os que se esforçam mais.
Quando e até quando é possível prever? Matemáticos sérios, uni-vos.
Em que quantidade é possível prever? Matemáticos sérios, uni-vos pela segunda vez.
Quanto cada qual deverá receber? Matemáticos sérios, uni-vos pela terceira vez, e dessa vez levem uma bebida.
Feitas essas perguntas fundamentais, por ocasião dessa mesa de debate que se nominou de “Literatura e Previdência”, lembrei do livro autobiográfico Cartas da Rua, de Charles Bukowski.
Talvez possamos encontrar nessa narrativa uma possibilidade de articular esses três significantes: direito, literatura e previdência. O livro conta a história do trabalho que Bukowski desempenhou nos correios dos Estados Unidos em meados do século passado e todas as agruras de um trabalho mal pago e absolutamente desumano.
Podemos usar o livro do Bukowski como um disparador, não exatamente para entender a vida de um escritor boêmio, mas as consequências, nas “carnes” físicas e psíquicas, de um regime de trabalho que se ocupa em consumir a vida de alguém igual a de um frango em cativeiro. Afinal, a literatura server para que nós possamos imaginar como é a vida de quem não tem privilégios como vestir um terno de lã fria em escritórios com ar-condicionado.
Bukowski faz uma pergunta acachapante em Factótum, outro livro: “como diabos pode um homem gostar de ser acordado às 6h30 da manhã por um despertador, sair da cama, vestir-se, alimentar-se à força, cagar, mijar, escovar os dentes e os cabelos, enfrentar o tráfego para chegar a um lugar onde essencialmente o que fará é encher de dinheiro os bolsos de outro sujeito e ainda por cima ser obrigado a mostrar gratidão por receber essa oportunidade?”[1]
Em Cartas na Rua há um trecho em que Chinaski, pseudônimo de Bukowski, trava um diálogo com seu chefe imediato:
“— Temos um cronograma a cumprir, Chinaski.
— Ô.
— E quando não se cumpre o cronograma, isso significa que alguém mais terá de carimbar essas cartas por você. Isso significa horas extras.
— Você quer dizer que sou o responsável por essas três horas e meia a mais que solicitam quase todas as noites?
— Olhe, você levou 28 minutos numa caixa de 23. E isso é tudo o que interessa. Nós nos apoiamos nisso. AGORA, se você for pego mais uma vez atrasado, será chamado para CONSELHOS AVANÇADOS!
— Suponha que eu pegue uma caixa fácil. De vez em quando eu pego. Às vezes termino uma caixa em cinco ou oito minutos. Digamos que termine uma caixa em oito minutos. De acordo com os padrões de tempo testados, eu teria economizado quinze minutos aos Correios. Será, então, que posso pegar esses quinze minutos e descer até o refeitório, comer um pedaço de torta com sorvete, assistir tevê e voltar?
— NÃO! VOCÊ DEVE AGARRAR UMA CAIXA IMEDIATAMENTE E COMEÇAR A CARIMBAR CARTAS!
Onze anos como um tiro na cabeça. Eu tinha visto o emprego devorar os homens. Eles pareciam derreter. Lá estava Jimmy Potts do Posto Dorsey. Da primeira vez que cheguei lá, Jimmy era um cara musculoso em sua camiseta branca. Agora estava liquidado. Colocava seu banco o mais próximo do chão possível, e se agarrava para não cair. Vivia de tal maneira cansado que já nem cortava o cabelo e usava as mesmas calças há três anos. Trocava as camisas duas vezes por semana e caminhava bem devagar. Tinham-no assassinado. Estava com 55 anos. Faltavam sete para ele se aposentar.
— Nunca vou conseguir — ele me disse.
Ou derretiam ou engordavam, enormes, especialmente na bunda e na barriga. Era o banquinho, e os mesmos movimentos e a mesma conversa. E lá estava eu, sofrendo de tonturas e dores nos braços, pescoço, peito, por toda parte. Dormia o dia para conseguir descansar e estar apto ao trabalho. Nos fins de semana, tinha de beber para esquecer a rotina. Eu pesava 83 quilos quando cheguei. Agora estava com 101 quilos. A única coisa que você mexia por ali era o braço direito.”
Se pensamos em Bukowski trabalhando nos correios estadunidenses sem conseguir pensar em nossos trabalhadores brasileiros, hoje mais do que nunca com o desmonte promovido com a reforma trabalhista de 2017 e com a naturalização da razão neoliberal de mundo, realmente precisamos de mais empatia. Talvez seja isto: empatia e cálculo, as carências que faltem para o direito previdenciário brasileiro. Mas não esqueçam que empatia, na esfera pública, tem outro nome: política.
Seja com literatura ou de qualquer outro jeito, sem enfrentar essas questões fundamentais e primeiras, não se conseguirá calcular bem as coisas.
PAULO FERRAREZE FILHO faz pesquisa de pós-doutorado em psicologia social (USP), é doutor em direito (UFSC), psicanalista em formação e professor de psicologia jurídica (UNIAVAN)
[1] BUKOWSKI, Charles. Factótum. tradução de Pedro Gonzaga – Porto Alegre: L&PM:2013. p. 107
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