ARTIGOS

Um retrato de 1822, o ano da independência

por José Ernani Almeida

Quando estamos comemorando os 198 anos da Independência não podemos nos limitar ao que se deu no 7 de setembro de 1822, quando D. Pedro, erguendo-se dos estribos e alçando a espada afirmou: “ Brasileiros, de hoje em diante nosso lema será: Independência ou morte”. E o sol em raios fúlgidos, brilhou nos céus da pátria naquele instante.

Como a história não é uma sucessão de nomes solenes e datas vazias, mas um instrumento de análise a serviço da consciência vamos a uma reflexão sobre o Brasil daquele 1822.

Para começar é preciso enfatizar que efetivada a Independência, consumou-se a revolução colonial sem revolução social. Ao contrário das emancipações coloniais do nosso tempo, onde, muitas vezes, a revolução social veio a cavaleiro da revolução colonial, no caso brasileiro, esta foi feita de modo a evitar aquela.

Diferentemente de outros países latino-americanos, onde o processo emancipatório gerou lutas e, portanto, um maior envolvimento popular, no Brasil, embora se falasse em povo (…“diga ao povo que fico!”) a Independência se circunscreveu ao anseio antimonopolista e, por extensão, autonomista das elites agrárias e urbanas.

A realidade brasileira da época não dava esperanças da viabilidade de formação de uma nação independente, soberana e que proporcionaria igualdade de oportunidades a todos. (Coisa que ainda não conseguimos.)

Havia uma população pobre e carente de tudo, que vivia à margem de qualquer oportunidade em uma economia agrária e rudimentar, dominada pelo latifúndio e pelo tráfico negreiro. De cada três brasileiros, dois eram escravos, negros forros, mulatos, índios ou mestiços.

O analfabetismo era geral. De cada dez pessoas, só uma sabia ler e escrever. Os ricos eram poucos e, com raras exceções, ignorantes. O medo de uma rebelião dos cativos, tirava o sono da minoria branca.

Contrariando todos os movimentos de pré-independência ( Inc.Mineira, Conj.Baiana e Rev Pernambuca de 1817 – que defenderam a República), foi adotada a Monarquia.

Como observou Celso Furtado, a monarquia criou uma estrutura vertical e centralizada para possibilitar, pela via política, uma unificação que a base econômica tornava inviável.

Vista por esse ângulo, a unidade nacional não nasceu espontaneamente da integração econômica e social num determinado espaço e sim foi resultante de uma construção artificial forjada pelo regime imperial.

Na verdade, a unidade dos senhores de terras ao redor da monarquia representou a criação de um Estado que garantisse a propriedade e a escravidão.

Um dos versos do Hino da Independência diz: “ já raiou a liberdade no horizonte do Brasil”. Para a classe dos grandes latifundiários que não queriam mais ficar submetidos ao regime do monopólio comercial, ela pode ser aplicada. Não, certamente, para os escravos, que também não participaram das lutas emancipatórias, até porque nada tinham a ganhar com isto.

Para Décio Freitas, os negros que participaram das lutas eram “libertos integrados no sistema de segurança do senhor-de-engenho”.

Em síntese a independência feita pelas elites garantiu a manutenção do “status quo”. Consumada a Independência, como ensina Luiz Roberto Lopez, “a classe dominante garantiu que o Estado nacional então formado defenderia a sua legitimidade jurídica como classe proprietária e suas necessidades inegáveis: latifúndio, escravidão, liberalismo econômico”. Enfim, a Independência foi articulada pela bancada ruralista.

Foi, na verdade, organizada por uma minoria para uma minoria em conexão com os interesses comerciais do capitalismo europeu em expansão. Foi mais uma das ocasiões em que o Brasil mudou para continuar igual.

Tratou-se de um movimento feito dentro de uma determinada estrutura de Estado e não feito contra ele. O conteúdo político reforçou a ausência de amplitude social.

Esta herança persiste até os dias atuais. São comuns, por exemplo, críticas a “cotas para negros”, manifestações racistas e oposição à qualquer medida de alcance social, como estamos vendo hoje, por parte da extrema-direita raivosa. A Casa Grande não tolera a ascensão da senzala!

A retórica grandiloquente do Grito do Ipiranga apenas serve à causa de uma historiografia ufanista, hoje já sem sentido, ou para enganar os mais incautos.

JOSÉ ERNANI ALMEIDA é professor de história do Brasil e especialista em história pela UPF/RS

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