por Ezilda Melo

“(…) E as brasileiras têm razões de sobra para se opor ao machismo reinante em todas as instituições sociais, pois o patriarcado não abrange apenas a família, mas atravessa a sociedade como um todo. Não obstante o desânimo abater certas feministas lutadoras, quando assistem a determinados comportamentos de mulheres alheias ao sexismo, vale a pena levar esta luta às últimas consequências, a fim de se poder desfrutar de uma verdadeira democracia”.
Heleieth Saffioti
Dia 30 de maio de 2020, publicamos pela Editora Tirant lo Blanch a obra “Direito e Maternidade”, primeiro livro no Brasil que se debruça exclusivamente sobre a questão da maternidade e suas relações jurídicas.
Com 37 autoras e 3 autores de 11 estados brasileiros, o livro conta com 27 artigos divididos em quatro capítulos (conceber, dar à luz, aprisionar e resistir), e, à guisa de encerramento, uma entrevista concedida por duas advogadas à uma jornalista feminista que questiona o lugar da mãe nas varas de família.
Falar sobre maternidade é entrar na história das mulheres. Independente de ser um sonho de realização, um desejo profundo da existência, um “descuido” reprodutivo ou uma recusa com explicações várias, essa experiência está no âmago das definições sociais e culturais do feminino, e traduz muito do que as sociedades pós-modernas ainda esperam das mulheres em lugares já construídos em períodos passados.
As experiências de maternidade são múltiplas e estão longe de um ideário romântico. Padecer no paraíso virou um jargão para a maternidade, porém a experiência materna consegue reunir um conjunto bastante diferenciado de práticas sociais, de agentes e de representações que designam a qualidade de uma mulher ser mãe. Refere-se ainda ao imaginário no qual se articulam ideologias de gênero e também a questões de saúde pública. Françoise Thebaud, historiadora francesa autora de vários trabalhos sobre a maternidade, escreveu sobre o tema da maternidade. A compreensão histórica deste assunto é importante para a compreensão da história das mulheres, como também da dinâmica do gênero no trabalho de eternização das estruturas da divisão sexual-social, conforme nos ensinou Pierre Bourdieu.
A experiência da maternidade está muito associada à uma essência natural do que se espera do feminino, reforça estereótipos e discriminações seja por parte do Estado, que a ressignifica com uma série de discursos e leis proibitivas, seja pela memória das mães que a reconstrói como subjetividade.
A maternidade se desdobra em experiências políticas, ideológicas e históricas. Na pesquisa historiográfica, bastante já se caminhou desde 1991 quando as historiadoras Gisela Bock e Pay Thane publicaram a coletânea “Matenidad y politicas de gênero”, que dá ideia da diversidade da pesquisa numa abordagem historiográfica comparativa.
No Direito, ainda temos muito a caminhar sobre este assunto, porque o que temos são artigos esparsos, teses sobre a proteção constitucional à maternidade ou ainda sobre a experiência da maternidade no cárcere. São temas que se unificam quando permitem entrecruzar saberes e poderes sobre um assunto que consubstancia fortemente um lugar social construído e ressignificado por tantas civilizações e que se relaciona com os direitos das crianças e adolescentes.
O Estado brasileiro criminaliza mulheres em tipificações forjadas no conservadorismo, no fanatismo religioso de uma sociedade que ainda hoje, no século XXI, no ano de 2020, está à beira do totalitarismo. Muito longe disso, as políticas da maternidade no Brasil não partem de uma concepção dos direitos das mulheres em ser mãe ao contarem com assistência pública. Pelo contrário, os legisladores têm uma visão instrumental das mulheres e quando tratam sobre o aborto no Código Penal pensam que resolveram todas as situações decorrentes da maternidade que, por sua vez, está diretamente ligada ao controle da natalidade, aos hospitais, aos serviços públicos de saúde e de assistência social, às escolas, à alimentação e moradia adequadas, ao vestuário, ao trabalho das mães, seja doméstico ou remunerado, à criminalidade, que se relaciona com a sociedade que estamos construindo.
As mães que exercem jornadas triplas de trabalho, as que enfrentam processos judiciais nas varas de família com suas angústias e dificuldades para conseguir, muitas vezes, irrisórios valores de pensão para seus filhos; mães que figuram em processos criminais; mães em situação de vulnerabilidade; mães encarceradas; mães com filhos portadores de deficiências ou que requerem judicialmente o direito de abortar e o tem negado por desembargadores homens que possuem instrumento legislado também por outros homens; mães que sofrem violência na hora do parto; mães solo e suas especificações na criação de filhos; mães e as questões trabalhistas advindas desde a descoberta da gravidez, passando pelas leis que a protegem durante e após o parto…. São tantas ramificações dessa temática que fica patente ser a Maternidade um tema de fôlego a ser enfrentado por todas que militam tendo o feminismo como filtro de análise das questões jurídicas.
Maternidade e Direito foi dividido da seguinte forma:
No primeiro capítulo temos os artigos de Emily Garcia (Deitadas no divã: a mãe e a mulher), de Paulo Ferrareze Filho e Paulo Silas Taporosky Filho (A maternidade como fonte do direito?), de Consuelo Yatsuda Moromizato Yoshida ( Mulher e água: a vida como denominador comum), de Ediliane Lopes Leite de Figueiredo (A tradição jurídica sexista brasileira: manifesto da discriminação e desigualdade das mulheres) e de Izabelle Pontes Ramalho Wanderley Monteiro e Ana Luisa Celino Coutinho (Gênero e violência contra a mulher no direito brasileiro: uma análise histórica)
No segundo capítulo temos artigos escritos por Gloria Maria Pereira Funes (Violência obstétrica: a dor além do parto), Grasielle Borges Vieira de Carvalho e Jéssica Souto de Figueiredo Andrade (Mulher e parto: reflexões sobre a violência obstétrica e possíveis desdobramentos), Paloma Leite Diniz Farias (A racionalidade emancipatória para minorias como medida de justiça: o estudo do caso da retirada de neonatos da posse materna na comarca de belo horizonte), Nara Sarmanho Cunha (O caminho de Beatriz – o percurso processual da destituição do poder familiar de uma mulher em situação de rua e usuária de drogas), Sueid Fernandes Macedo e Inês Virginia Prado Soares (Maternidade em carne viva: os filhos do Zika), Catarina Cardoso Sousa França, Hemily Samila da Silva Saraiva, Rebeca de Souza Barbalho (Análise da responsabilidade civil na atuação do estado nos casos de microcefalia: direito a saúde na aplicação de políticas públicas).
No capítulo três a abordagem foi feita por Bruna Isabelle Simioni Silva e Kemelly Maria da Silva Lugli (Mulheres encarceradas: ausência de tratamento específico), Luciana Costa Fernandes (Além da maternidade no cárcere: discursos de juízas criminais e os limites da agenda que universaliza experiências imbricadas de mulheres em conflito com a lei ), Jane Glaiby S. Bastose Isabel S. Kahn Marin (Intersubjetividade no cárcere: mulheres detentas, bebês e agentes prisionais), Ivonete Reinaldo da Silva e Taysa Matos (Apesar de você amanhã há de ser um novo dia: o direito à maternidade na escuridão do cárcere), Monaliza Maelly Fernandes Montinegro (Sobre Maria e as prisões invisíveis), Luana Luiza Ferreira Serafim e Ediliane Lopes Leite de Figueiredo (Avanços legais para proteção à maternidade e à infância no ambiente do cárcere).
No capítulo quatro temos os artigos Maternidade, refúgio e violência: luzes sobre o caso das mães dinamarquesas de Andreza Pantoja Smith e Luanna Tomaz de Souza, Mãe solteira não. mãe solo! considerações sobre maternidade, conjugalidade e sobrecarga feminina de Lize Borges, A trajetória das mulheres nas carreiras acadêmicas: a difícil escolha entre a família e a profissão escrito por Andreza Cristina Baggio e Fernanda Schaefer Rivabem, A maternidade no judiciário: a narrativa da violência doméstica em processo de família de Ezilda Melo, Violência patrimonial contra a mulher: enfrentamento nas varas das famílias de Mariana Régis; Direito à moradia e violência doméstica: um diálogo necessário a partir da lei de regularização fundiária urbana e indenização por ato ilícito de Celyne da Fonseca Soares e Daiane Lima dos Santos; Interrupção do contrato de trabalho para acompanhamento de gestante: hermenêutica do artigo 473, inciso X, da CLT de Marco Aurélio Serau Junior e Laura Souza Lima e Brito, Imputação de alienação parental contra mulher em situação de violência doméstica de Izabelle Pontes Ramalho Wanderley Monteiro e Ana Luisa Celino Coutinho; Transgeracionalidade do conflito doméstico: violência psicológica contra a mulher e seu impacto no âmbito familiar de Maria Júlia Poletine Advincula; Afastamento do trabalho no caso de violência contra a mulher (Lei Maria da Penha): aspectos remuneratórios controversos de Marco Aurélio Serau Junior. O livro se encerra com a entrevista: louca, ressentida, aproveitadora – o lugar reservado às mães nas varas de família feita por Flávia Azevedo junto às advogadas Marina Ruzzi e Ezilda Melo
São temas que se unificam quando permitem entrecruzar saberes e poderes sobre um assunto que consubstancia fortemente um lugar social construído e ressignificado por tantas civilizações e que se relaciona com os direitos das crianças e adolescentes. Tratamos todos os temas relacionados à maternidade nesta obra? São muitos temas que precisaremos enfrentar nos próximos volumes. Que possamos reconhecer dentro dos grupos vulnerados, situações que são especificamente do sexo feminino, da maternidade, e que merecem uma acolhida e proteção mais firme do legislativo, executivo e judiciário. Pelo reconhecimento dos direitos das mães e por uma sociedade melhor!
Tratamos todos os temas relacionados à maternidade neste livro? Faltou muita coisa, a exemplo do tema do aborto (o STF acabou de rejeitar ação por aborto de gestantes com zika, vemos também Tribunais de Justiça, como o da PB no final de 2019 que negou a interrupção da gravidez de feto com “Síndrome de Edwards”), do direito de não ser mãe, o feminicídio de mães, as tragédias das mães que perderam seus filhos para a violência, tráfico de drogas e de crianças, mães que adotam, mães e a educação feminista para uma sociedade igualitária, mães no espaço público da política e dos altos cargos, a maternidade na adolescência, a maternidade lésbica, a maternidade na jurisprudência brasileira… são muitos temas que precisaremos enfrentar nos próximos volumes.
Para baixar “Maternidade e Direito” gratuitamente acesse: https://editorial.tirant.com/br/libro/E000020005268
EZILDA MELO é advogada, mestra em Direito pela Universidade Federal da Bahia/UFBA e professora universitária
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