ARTIGOS

Como usar a Constituição contra a pandemia?

por Mousés Stumpf

Imersos na inevitável realidade e sua complexidade, existimos! Mas como? Enquanto sistema social.

Em vista das circunstâncias atuais, a pandemia do COVID – 19 é observa a partir de seus reflexos sistêmicos: enquanto agente agressor do sistema social. O Brasil imerso neste contexto, enfrenta uma questão que diz respeito ao embate entre a perspectiva econômica, jurídica e política. Não obstante, tal embate é observado a partir de um problema central: “o isolamento/distanciamento social”. Sistemicamente, a prática do “ isolamento/distanciamento social” reflete-se como uma reação imunológica do sistema social e formalmente se materializa pela tomada de decisões do Estado.

Delimitada a discussão, propomos uma fundamentação referencial-teórica que consiga organizar a complexidade gerada pela tomada de decisão do Estado à agressão externa da pandemia do COVID-19. A proposta, portanto, é de respondermos aos efeitos do “isolamento/distanciamento social” enquanto ato comunicativo dos sistemas econômico, jurídico, político e da saúde como ambiente policontextural.

A forma pela qual é possível descrever essa interação sistêmica policontextural, vislumbra-se a partir da fórmula constitucional. Ou seja, nos modelos sociais-democráticos é a Constituição Federal que constrói uma unidade das diferenças entre economia, direito e política. Observe-se, então, a Constituição Federal como uma condição de possibilidade para coexistência de interesses diversos e por vezes contraditórios entre si. Quero dizer com isso, que as regras constitucionais condicionam a possibilidade de harmonizar interesses complexos de caráter policontextural, sem que nenhum dos sistemas sociais se imponha em relação ao outro, subjugando sua autonomia.

 Nestes termos, com maior firmeza argumentativa podemos colocar a questão brasileira do “isolamento/distanciamento social” num ambiente de estabilidade a partir dos critérios da CF/88. A Carta Magna é a forma (modelo formal) que gera o acoplamento estrutural entre os sistemas da economia, do direito, política e saúde, sem que nenhum destes sistemas se sobreponha em relação ao outro. 

Entrementes, propomos recolocar a questão do “isolamento/distanciamento social”, perguntando: qual interesse deve prevalecer, econômico, jurídico, político ou sanitário-científico (saúde)? A resposta é todos e nenhum simultaneamente. Pois, o que prevalece é a regra constitucional, posto que será com fundamento na perspectiva normativa constitucional que o fato social “pandemia do Covid-19” deverá ser observado e controlado. Tal resposta define que os interesses policontexturais em face da crise de saúde pública do COVID-19, estão definidos de forma harmônica pela CF/88, regra essa que estabiliza as expectativas sociais, organizando os interesses de cada sistema a partir de uma unidade baseada pela fórmula social-democrática.

A resposta constitucional é fundamento para tomada de decisões do Estado tanto de caráter econômico, jurídico, político, quanto sanitário “simultaneamente”. Portanto, é vazio de sentido o discurso que busca colocar em cheque um interesse em relação ao outro, o que descreve não mais do que uma interferência comunicativa de nível periférico (ideológico-partidário).

Passando para o plano prático, devemos entender o problema do “isolamento/distanciamento social” a partir da margem constitucional de acordo com a seguinte fórmula:

         fato social (COVID-19)

________________________________ =  distanciamento social

         norma constitucional                                     

Para que não deixemos a questão sem uma demonstração das regras constitucionais aplicáveis ao caso concreto, faremos uma breve descrição das normas na medida em que as mesmas devam ser entendidas como atuando harmoniosamente entre si e não dentro de uma ordem hierárquica.

Segundo a fórmula apresentada, entenda-se “norma constitucional” na aplicação ao caso concreto “fato social” para fundamentação da “decisão” de acordo com a combinação das seguintes princípios e regras da CF/88:

Preâmbulo

Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL.

(…)

Título I: Dos Princípios Fundamentais:

Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: 

(…)

III – a dignidade da pessoa humana;

IV – os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; (Vide Lei nº 13.874, de 2019)

(…)

Título II: Dos Direitos e Garantias Fundamentais:

Capítulo I: Dos Direitos e Deveres Individuais e Coletivos:

Art. 5º, Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:  

(…)

XIII – é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer;   

(…)

Capítulo II: Dos Diretos Sociais: 

Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.  (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 90, de 2015)

(…)

DA SAÚDE

Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.

Art. 197. São de relevância pública as ações e serviços de saúde, cabendo ao Poder Público dispor, nos termos da lei, sobre sua regulamentação, fiscalização e controle, devendo sua execução ser feita diretamente ou através de terceiros e, também, por pessoa física ou jurídica de direito privado.

(…) 

As referidas normas constitucionais aplicáveis em conjunto (simultaneamente) devem ser entendidas no plano da “decisão” como fundamento científico para prática de “isolamento/distanciamento social”, na produção do sentido (função) de controle à pandemia do COVID-19, objetivando a preservação da vida, posto que este é o bem jurídico maior e que se encontra sobre a égide do Estado de Direito “por excelência”. Pois,  sob a margem de uma lógica sistêmica, os demais direitos não podem ser exercidos se a vida não estiver preservada, já que para os sistemas sociais a vida é condição de possibilidade para existência.

Assim, em um eventual embate de interesses econômicos e de saúde pública, a CF/88 atua no sentido da dissolução do suporto conflito, determinando que a vida é o bem jurídico maior, não por uma regra hierárquica, mas por uma característica fundamental dos sistemas sociais que buscam sua preservação em relação as agressões externas do meio/entorno. E esta é a definição do que seja a “vida”: partindo do pressuposto de um sistema que se autopreserva no tempo.

Por fim, em relação às interferências provenientes dos campos periféricos dos sistemas sociais: entenda-se “periférico” no que tange ao meio (ambiente/entorno); a suposta contradição entre interesses econômicos e de saúde pública (preservação da vida) para aplicação do mecanismo de “isolamento/distanciamento social”, existe enquanto discurso ideológico e partidário, mas não influencia (não deve influenciar) de forma direta na tomada de decisão dos sistemas sociais estruturalmente acoplados pela CF/88. Pois, o referido conflito (interferência comunicativa) não se mostra como elemento do código de cada sistema social autonomamente acoplado. Ou seja, os sistemas sociais não podem decidir com fundamento em critérios periféricos (interferências) sendo que essa margem de discussão apenas “influencia/interfere” no processo de tomada de decisão, mas enquanto “dado” que pode ou não transformar-se em informação para o sistema, gerando comunicação (sentido) a partir da decisão no caso concreto. 

Sem embargo, no caso concreto da pandemia de Covid-19, o fundamento que serve como informação para o sistema social, passa pelo modelo de estrutura formal que compõe o modelo de Estado de Direito, qual seja a Constituição Federal brasileira de 1988, que consegue harmonizar as assimetrias geradas pela policontexturalidade cotidiana para o processo de tomada de decisões. 

Enfim, a discussão em nível periférico influencia nos sistemas enquanto interferências comunicativas, não produzindo sentido. E “não produzir sentido” em nosso plano argumentativo significa “ser incapaz de produzir decisão”, o que cria um limite aos processos de decisão dos sistemas sociais estruturalmente acoplados a Constituição Federal. Pois, o “fato social: pandemia” é absorvido “obrigatoriamente” pela margem do Estado Democrático de Direito brasileiro que existe enquanto horizonte constitucional.

MOUSÉS STUMPF é advogado e mestre em direito público pela UNISINOS

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