ARTIGOS

Lula e Bolsonaro são faces da mesma moeda?

por Dyego Phablo dos Santos Porto

Há alguns anos, vários setores da sociedade civil vêm sustentando que Bolsonaro chegou ao poder por causa dos escândalos de corrupção e dos erros do PT. É fácil elencar os erros políticos do PT, principalmente do seu grande líder, que, no auge da popularidade, escolheu Michel Temer para a sucessão presidencial. 

Concordo com a tese de que o PT e parte da esquerda lacradora e cirandeira – essa que jura que faz militância no BBB “cancelando” (léxico da novilíngua) Deus e o mundo -, pavimentaram o caminho para o Bolsonaro; desde que, também, ressaltemos a contribuição decisiva dos abusos, dos arbítrios e dos crimes da Lava Jato, que fortificaram no imaginário social a criminalização da política e, consequentemente, a necessidade psíquica e coletiva de acreditar num macho picudo que poderia botar ordem na casa.

Acredito, ao contrário de alguns amigos marxistas, que em épocas de caos e medo, o lumpem não é revolucionário, antes se refugia em palavras de ordem e autoridade. Questiono se o papel da educação, enquanto projeto transformador, pode conter essa demanda oculta e selvagem. Os estragos da Alemanha nazista com ajuda dos doutores provam essa tese.

A mesma grande mídia combatida pelo bolsonarismo nunca fez a chamada “autocrítica” dos abusos da operação, mesmo que visíveis para qualquer rábula, inclusive noticiadas na imprensa estrangeira. O erro do bolsonarismo ao criticar a mídia é, além da fixação quase libidinal na Globo, negar fatos e evidências de maneira cínica.

Qualquer um sabe que a mídia televisiva, e não só a Globo, induz o telespectador a selecionar uma parte do real e pode, paradoxalmente, ocultar mostrando [1]. Se Moro & Deltan, a dupla sertaneja, e boa parte da Lava Jato estivessem na Espanha ou EUA, estariam provavelmente rodando bolsinha em alguma esquina [2]. Como não se viu contraponto midiático à Lava Jato, a anomia surgiu e a demanda autoritária foi inexorável.

A despeito da existência dos escândalos de corrupção, tentar compreender essa gente somente a partir do discurso anticorrupção é ingenuidade. Só um extraterrestre acredita que o brasileiro dá tanta bola assim para a corrupção. Se dessem mesmo, não teriam feito o Deltan Dallagnol, no auge da operação, passar vergonha no programa do Jô, quando indagou quantas pessoas acreditavam que a Lava Jato mudaria o país, no que teve uma grande decepção ao ver que a esmagadora maioria achava que não mudaria. A partir dali saquei que a palavra corrupção servia de pretexto para outras coisas, como adverte o Jessé Souza [3].

Também creio que há populismos e populismos. O lulopragmatismo desmobilizou a base real que lhe deu sustentação e se distanciou das periferias, principalmente da linguagem das periferias, optando por apenas governar sem aquela velha base. A prova cabal do que digo é que Dilma não conseguiu sequer colocar nas ruas parcela significativa do eleitorado, seja porque muitos se sentiram traídos, seja porque simplesmente não havia mais identificação. O lulopragmatismo, ao envolver-se na lógica do jogo corrupto, acreditou que sairia ileso, dada a alta popularidade, mas acabou sendo por ele engolido. 

De todo modo, o fato é que o populismo do Lula envolvia fome, miséria, pobreza, desigualdade, e isso, num país tão estupidamente desigual, não é pouca coisa. Semioticamente [4], esta era a mensagem. O populismo do Bolsonaro é maniqueísta (mais do que o outro) e, nascido do caos e da anomia causada pelo lavajatismo, é sádico, perverso e pervertido, como dizia o Darcy Ribeiro [5]. O bolsonarismo não surge pela proposição de ideias e projetos, ele surge pela negação autorreferente, sem propósitos, que se fundamenta em si mesmo.

É o ódio pelo ódio, sem escrúpulos. Bolsonaro surgiu do quinto dos infernos fazendo lives desgraçadas, explorando da pior forma possível um tema complexo como segurança pública, dizendo-se “cristão” e resgatando uma linguagem da década de 50 do século XX ao falar de “comunismo”, kit gay e outras paranoias. 

O lulopragmatismo, por mais que também tenha caracterizado um projeto de poder (o que, aliás, em termos de política, é uma obviedade), surgiu como sendo o esforço de acabar com a fome no país e diminuir as desigualdades. É só ler o discurso de posse de ambos para constatar. Semioticamente, portanto, o bolsonarismo é o discurso e a prática violenta. Então, os contextos dos populismos são eticamente diversos e, só por isso, eu não consigo colocá-los no mesmo plano. 

Não é tão difícil entender por que alguém que teve luz (luz!) pela primeira vez na vida em 2008, como já me foi relatado pessoalmente, é fiel ao seu político. Vou dizer o que para este cidadão? Que ele deve se “(pre)ocupar” com a “existencialidade jurídica”? Essas pessoas sequer se veem como beneficiárias das declarações formais e abstratas da Constituição e das leis, o que as torna mais vulneráveis em termos de troca concreta. Eu, na situação, venderia meu voto facilmente, o que me torna um criminoso para os jurisloides [6]. Mas é muito difícil entender por que depositar confiança em um boçal que esteve há 30 anos no Congresso e nunca fez nada na vida política.

Faço uma ressalva que me compadeço com o bolsonarismo ralé, digo, com aquela parcela da população muito pobre que também viu no Capitão uma saída para o caos. Não é que concorde, mas é mais fácil compreendê-los que a classe média pseudoletrada para a qual, se pudessem ditar, o voto deveria ser censitário ou somente para quem tivesse “curso superior”. 

O que mais dói é se deparar com uma classe média que supostamente tem capital cultural – o que marca a classe média não é a economia, é o traço moral, cultural e intelectual – e que durante os tais dos “16 anos” (que na verdade são 14) dizia que deveríamos votar em alguém que tenha curso superior, que pobre vota com a barriga e outras coisas, vendo-se obrigada, hoje, a votar num jumento de carga, para dizer pouco, e fazer todo tipo de pirueta argumentativa a fim de justificar o absurdo. Isso deveria passar num telão bem grande em praça pública. 

Algumas vezes, e aqui vale para a “academia”, a fala vem recheada de intelectualismo vazio, normalmente por quem acredita estar fazendo apenas “ontologia”, esperando atrás de alguma moita a “surgência do ser” (sei lá o que diabos é isso), havendo até mesmo quem queira “curar o direito”, uma tese até engraçada porque diz coisas óbvias e elementares que poderiam ser explicitadas de outras formas. Mário Quintana, no livro O Segundo Olhar, disseca com maestria a mesminha coisa [7]. Mas, sabe como é, tem que ter aquele charme cult, aquela verborragia inútil que forma o que Warat chamava de culturalecto [8]. Tenho a impressão que quem escreve um troço desses não sabe nada da vida. Devo, porém, ser justo e separar o joio do trigo, pois felizmente tem gente boa que fala no nazista Heidegger [8]. 

Então, entre alguém faminto que se vira para sobreviver, que teve acesso à luz e a primeira casa na vida por causa de um programa social, e um pseudointelectualismo de certa classe média descolada da realidade, eu fico com o primeiro. O Lima Barreto dizia uma coisa linda que era mais ou menos o seguinte: devemos ser duros e ríspidos com a elite e os pseudoletrados; e puro afeto com os mais pobres e sem instrução. 

É isso Lima Barreto. 

DYEGO PHABLO DOS SANTOS PORTO é Analista Jurídico da Defensoria Pública do Estado do Amazonas

NOTAS

[1] “Desejaria dirigir-me para coisas ligeiramente menos visíveis mostrando como a televisão pode, paradoxalmente, ocultar mostrando, mostrando uma coisa diferente do que seria preciso mostrar caso se fizesse o que supostamente se faz, isto é, informar; ou ainda mostrando o que é preciso mostrar, mas de tal maneira que não é mostrado ou se torna insignificante, ou construindo-o de tal maneira que adquire um sentido que não corresponde absolutamente à realidade” (BOURDIEU, Pierre. Sobre a Televisão Seguido de A influência do Jornalismo e Os Jogos Olímpicos. Tradução de Maria Lúcia Machado. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997, p. 24). 

[2] No caso Peláez, Crespo y Correa vs. Garzón o Tribunal Supremo da Espanha condenou o juiz à perda do cargo em razão de escutas ilegais que envolvia a cúpula do Partido Popular e seus advogados. Nos EUA, a juíza Ana Gardiner e o promotor Howard Michael Scheinberg foram punidos por trocarem mensagens secretas durante julgamento em que atuavam. A juíza se viu obrigada a pedir demissão e se comprometeu a não mais concorrer ao cargo de juíza, além de ter sido condenada pela Suprema Corte do Estado da Flórida e perdido a licença definitiva para o exercício de qualquer atividade jurídica. O promotor teve a licença para a prática de atividades jurídicas suspensas por dois anos. A esse respeito, confira-se: <<https://www.conjur.com.br/2019-jun-19/antonio-vieira-eua-tratam-contatos-entre-juizes-promotores>&gt;. Também em Isarel o conluio entre juiz e promotor acarreta consequências: <<https://www.conjur.com.br/2019-jun-24/israel-conversa-indevida-entre-juiz-mp-proibida-anula-prisoes>&gt;. Como se vê, só por aqui na colônia que juiz vira herói.

[3] “Essa noção é central para a legitimação do liberalismo conservador brasileiro e dos interesses oligárquicos que esse liberalismo de fachada sempre defendeu. Ela possibilita a criminalização seletiva do Estado e da política toda vez que o sufrágio universal põe alguém com alguma ligação com as classes populares, além de tornar invisível a verdadeira corrupção dos donos do mercado que capturam o Estado e saqueiam o orçamento público” (SOUZA, Jessé. Subcidadania brasileira: para entender o país além do jeitinho. Rio de Janeiro: Leya, 2018, p. 17).

[4] Semiótica é a ciência que estuda as leis que regem os signos no quadro da vida social, na definição de Saussure (que, porém, chamava-a de semiologia), e ação ou influência que envolva um signo, o objeto e seu interpretante, na definição de Peirce. Eco, resumindo, diz que o signo é construído com base em convenções sociais e pode ser entendido como algo que está no lugar de outra coisa (ECO, Umberto. Tratado Geral de Semiótica. Tradução de Antônio de Pádua Danesi e Gilson Cesar Cardoso de Souza. São Paulo: Perspectiva, 2014, p. 10-11). Em termos sígnicos, então, o bolsonarismo pode ser trocado por outras coisas, como violência discursiva, criação política de um só inimigo, autoritarismo, anomia, ódio, combate ao comunismo e outras lisergias. O lulopragmatismo pode ser trocado por política de conciliação de classes, conchavos, corrupção, desprendimento das bases reais, compensações sociais com base em políticas reais de combate à fome e desigualdade, expansão do crédito etc. 

[5] Entrevista concedida ao Roda Viva no ano de 1988, disponível em: <<https://www.youtube.com/watch?v=6r7QDo9yHJk>&gt;.

[6] A esse respeito é interessante a legislação mexicana onde há a previsão de que, por notório atraso intelectual de alguns indivíduos, seu distanciamento dos meios de comunicação e sua miserável situação econômica, podem os juízes, se o Ministério Público estiver de acordo, eximi-los das sanções legais a que houverem incorridos, bem como que se os conceda um prazo para que cumpram as determinações legais, não sendo caso de leis que afetem diretamente o interesse público. Cf. debate nesse sentido em: CALVO GONZÁLEZ, José. Certeza jurídica e ignorancia del derecho. Disponível em: <<http://www.mundojuridico.adv.br>&gt;. 

[7] No prefácio da obra, João Anzanello Carrascoza anota: “No poema ‘As coisas’, Mário Quintana afirma que há na Natureza um encanto sobrenatural, só possível de ser captado se lhe lançamos um segundo olhar. Sempre vistas de relance, ou mesmo se percebidas num olhar de primeira vez, essas coisas, tão logo passe o espanto que nos causam por ensejarem o novo, vão se tornando comuns, perdendo a beleza e a aura de mistério, retiradas (em verdade) pela visão automatizada, da qual mesmo os observadores mais argutos, como os poetas, não estão isentos” (QUINTANA, Mário. O Segundo Olhar. Organização: João Anzanello Carrascoza. Rio de Janeiro: Alfaguara, 2018, p. 9).

[8] Ver capítulo 3 da obra: WARAT, Luís Alberto. A ciência jurídica e seus dois maridos. 2ª ed. Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2000. 

[9] Marco Casanova, do Rio de Janeiro, é um excelente heideggeriano. Cf., nesse sentido: CASANOVA, Marco Antônio. Compreender Heidegger. 5ª ed. São Paulo: Vozes, 2014. 

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