por Lucas Teixeira Reis Barbosa

A sociologia, além de lidar com seus próprios entraves epistemológicos, enfrenta a forte onda de senso comum que pretende com ela dialogar. Enquanto as hard sciences (biológicas, físicas, exatas) enunciam sua relação com o senso comum, e só se preocupam em criar fronteiras com as demais ciências, a sociologia acaba sendo muito relacionada a esse tipo de saber, que embora seja rico, não é sistemático, e ignora os postulados que poderiam lhe conferir cientificidade.
Como expõe Bauman[1], o senso comum não tem um ponto de vista para emitir acerca daquelas áreas do conhecimento habitualmente tratadas como hard sciences, porque não são conhecimentos acessíveis, já que é necessária infraestrutura de ponta para viabilizar as observações, e, por isso, estão sob a exclusividade da academia. Ainda, segundo o autor, o senso comum prefere não pensar essas questões, e delegar essa responsabilidade aos cientistas especialistas na área.
Em que pese sejam conhecimentos aparentemente sob a exclusividade da academia, os diálogos entre ciência e senso comum são ainda mais curiosos no território brasileiro: o senso comum assume uma posição de negacionismo dessas ciências, por variadas motivações, mas principalmente motivações de ordem religiosa (muitas vezes relacionadas ao fenômeno da expansão do neopentecostalismo), ignorando todo o aparato científico e conclusões dos especialistas da área, a fim de defender visões pré-construídas sobre assuntos bem estabelecidos na academia[2].
O pensamento sociológico trabalha questões que envolvem nossas práticas e experiências cotidianas, afetando o rumo da sociedade e a própria vida dos indivíduos que a compõe. Por esse motivo, o senso comum tende a emitir opinião sobre essas questões, afinal, fazem parte do dia-a-dia, diferentemente, por exemplo, da física quântica, preocupada com o nível subatômico da matéria, área que só afeta a vida da sociedade em situações muito específicas, ou seja, não cotidianas.
Embora o senso comum e o conhecimento sociológico pareçam ter um objeto em comum, convém destacar o que torna o primeiro um conhecimento assistemático, e o que caracteriza o último como ciência. Embora as questões de que trata a sociologia estejam imersas na vida cotidiana, é incomum pensar nos significados das experiências às quais somos submetidos e comparar com as experiências dos demais, que é o que faz o pensamento sociológico, preocupado em entender como as experiências individuais estão relacionadas ao rumo que segue a sociedade na qual o indivíduo está inserido[3]. A sociologia, em contraste com o senso comum, subordina a regras rígidas o discurso. É o que torna a fronteira entre a Sociologia e o senso comum menos permeável e fluida. O discurso do senso comum não aplica mecanismos de autocontrole e nem é minimamente preocupado em conferir falseabilidade ao que produz, tornando todo esse amplo conhecimento desprovido de cientificidade.
Outra profunda diferença reside no fato de que na nossa experiência cotidiana, vemo-nos como autores autônomos do rumo que seguiremos na vida. O pensamento sociológico demonstra que existe na realidade uma ampla rede de interdependência moldando ou pelo menos criando predisposições. Bauman desenvolve essa temática, dizendo que quando superamos a interpretação que se vale de indivíduos atores tomando ações individuais, para seguir numa interpretação pensando em redes de interdependência como ponto inicial de uma pesquisa sociológica, percebemos que a primeira não é um bom caminho para entender a sociedade e os indivíduos nela inseridos. Pensar de forma sociológica é procurar entender como é dado o sentido da realidade humana, a partir de teias de interdependência que nos levam às nossas motivações para alguma ação, a fim de entender como essas motivações passam a existir, em primeiro lugar.
Bauman explicita ainda um tenebroso ciclo causado pelo senso comum: a visão de que é possível fazer pouco ou quase nada para mudar a realidade social existente. O senso comum possui sua validade porque é um pensamento sempre auto-evidente, são fatores necessariamente amplamente repetidos, e por isso familiares, o que leva ao problema da naturalização, ou seja, um pensamento que é naturalizado, é, por isso, aceito, e também por isso pouco questionado.
A partir da visão de naturalidade da realidade social, os indivíduos, por muitas vezes negativamente atingidos, pouco se opõem e a alteram. A familiaridade inibe o questionamento e a ação, segundo essa visão. Surgindo em oposição à realidades muito bem estabelecidas, conhecidas, familiares, a Sociologia pode se mostrar como um conhecimento um tanto quanto inconveniente, principalmente para quem se beneficia da realidade social. Ao questionar crenças confortáveis do imaginário social, a sociologia causa um abalo, principalmente ao levar à discussão assuntos tidos como inquestionáveis.
LUCAS TEIXEIRA REIS BARBOSA é bacharelando em direito (UFRJ), pesquisador do Observatório da Justiça Brasileira e diretor do centro acadêmico Cândido de Oliveira
[1] BAUMAN, Zygmunt; MAY, Tim. Thinking sociologically. John Wiley & Sons, 2019.
[2] Exemplo desse cenário é o movimento de terra planistas que cresce na internet, que é tratado como humor para uns, apesar de muitos de fato acreditarem que exista uma chamada “ciência alternativa” ou “não-oficial”. Outro exemplo é a posição da maioria dos religiosos em negar a teoria da evolução darwinista ou a teoria do Big Bang, amplamente discutidas e aceitas pelos cientistas. Ainda, a posição do presidente Jair Bolsonaro, que trata a pandemia do coronavírus como “gripezinha” (sic).
[3] Bauman, nesse âmbito, traz atenção à figura do sociólogo, que estuda a sociedade enquanto ele mesmo está inserido nela, sendo impossível se desligar completamente. Posição que na verdade configura um ponto positivo para a produção de conhecimento sociológico, uma vez que o sociólogo é capaz de ter uma visão interna, com sua própria experiência de vida, e externa, no estudo de como essa sua experiência de vida foi causada e é parte de uma rede interdependência com outros fatores sociais.
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