por Eduardo Newton

Diante do atual cenário pandêmico, novas formas de agir vieram a ser adotadas pelas instituições que teoricamente gravitam na órbita do valor justiça. Com o intuito de evitar o contato físico, plantões remotos, videoconferências[i] e o exercício do chamado “home office” vêm sendo utilizados.
Quiçá como forma de prestar contas à sociedade, essas instituições ou seus órgãos de classe têm divulgado número de atendimentos, manifestações e decisões. A questão a ser enfrentada consiste na validade desse tipo de comunicação e se ela não traduz uma típica manifestação econômica da atuação humana.
Um desvio deve ser realizado, e aqui não é o corporativismo que o justifica, mas sim um assombro diante daqueles que gratuitamente em redes sociais quiseram aviltar o trabalho da Defensoria Pública na seara criminal (A Defensoria Pública estadual não para… Manifesta-se para que assassino seja beneficiado pela liberdade provisória …). O desprezo demonstrado aos direitos e garantias fundamentais muito bem ilustra a incapacidade de respeitar a Constituição. É oportuno lembrar que na dita sociedade líquida, o Texto Constitucional não possui essa natureza, o que implica na completa incapacidade de descartá-lo, tal como postagem, ao seu bel-prazer do intérprete.
Ao ser retomada a questão inicial, isto é, a validade da apresentação de números da atuação das instituições jurídicas, é importante realizar um paralelo como figura que ganhou tanta notoriedade com o neoliberalismo, a saber: a corporação. Muito embora verse sobre o período posterior a Guerra da Secessão, David Korten mostra a relevância do Judiciário na consolidação das corporações:
“Um sistema judiciário conservador que era consistentemente sensível aos apelos e argumentos dos advogados das corporações anulou com firmeza as restrições que uma coletividade de cidadãos preocupados tinha colocado com esmero sobre o poder das corporações. Passo a passo, o sistema judiciário inseriu novos precedentes que tornavam a proteção das corporações e das propriedades corporativas uma peça central da lei constitucional.”[ii]
Agora, ao que se verifica é que a criatura se apossou do seu criador e associados, passando então a determinar os seus rumos. A própria concepção de utilidade pode vir mascarada para a divulgação de como o trabalho é feito.
Alguns exemplos podem muito bem ilustrar a capacidade de se manejar números como forma de mostrar um grande trabalho. Diante do caótico quadro na saúde pública, quantas decisões que determinaram uma internação foram efetivamente cumpridas? Quantas mortes decorreram pelos reiterados descumprimentos de decisões judiciais? No que se refere aos presos que vieram a ser soltos, quantos receberam alguma orientação no momento de sua liberdade?
Esses exemplos, e outros mais poderiam ser invocados, não constam em qualquer informe institucional e isso porque há somente uma preocupação exclusiva com a apresentação de números. As externalidades decorrentes de cada atuação são solenemente ignoradas na construção desses balanços.
Pode-se ir mais longe. As quantificações possam ser certificadas pelo viés utilitarista e a verdade é que a formação do ator jurídico é pautada exclusivamente por esse signo. O que não é útil sequer deve ser objeto de aprendizado. Nuccio Ordine apresenta censura a um modelo universitário europeu moldado pelos interesses do mercado, sendo certo que sua crítica também ecoa no Brasil:
“(…) nenhuma profissão poderia ser exercida de modo consciente se as competências técnicas que ela exige não estivessem subordinadas a uma formação cultural mais ampla, capaz de encorajar os alunos a cultivarem autonomamente seu espírito e a possibilidade que expressem livremente sua ‘curiositas’ (…) Sem essa dimensão pedagógica, ou seja, totalmente afastada de qualquer forma de utilitarismo, seria muito difícil, no futuro, continuar a imaginar cidadãos responsáveis, capazes de abandonar o próprio egoísmo para abraçar o bem comum, expressar solidariedade, defender a tolerância, reivindicar a liberdade, proteger a natureza, defender a justiça …”[iii]
Diante da explosão dos cursos universitários jurídicos e da quase que exclusiva preocupação com a aprovação em certames dos alunos, a começar pelo exame de ordem, a verdade é que uma visão mercadológica impera e impede que na graduação se tenha contato com saberes que pejorativamente são tidos como inúteis. Até a dita formação humanística somente tem razão de ser, pois pode ser inquirida em algum concurso. É o predomínio da pura razão instrumental. É a materialização da metodologia científica da modernidade, que visa a dominação e recebeu as seguintes considerações por parte de Leonardo Boff:
“(…) Francis Bacon (1561-1626), o pai do método científico, que via o laboratório como uma câmara de torturas de inquisidor. Deve-se forçar, coagir, torturar a natureza, escrevia ele, até que ela entregue todos os seus segredos. Foi o autor da expressão: saber é poder. E o poder era entendido como capacidade de dominar, isto é, fazer com que os outros façam aquilo que o mais forte quer.”[iv]
Sem sombra de dúvida, a ruptura desse viés utilitarista e de uma concepção de mundo construída exclusivamente por números, exige um esforço enorme e a reformulação de currículos escolares. Esperar a vinda de uma nova geração é uma atitude cômoda e que não pode ocorrer.
Da mesma forma que o desastre ecológico não permite a mera transferência de responsabilidade para os próximos seres humanos, a transformação das instituições jurídicas deve se iniciar de imediato. Para se encerrar essa aproximação delas com as corporações, mudanças precisam ser imediatamente realizadas. Algumas medidas são aqui elencadas, mas a criatividade humana certamente poderá imaginar outras e melhores. As estruturas burocráticas devem ser imediatamente reduzidas, pois o correto é que cada ator/operador jurídico esteja no pleno exercício de sua atividade-fim. Em outras palavras, séquitos de assessores que desconhecem a realidade da população não podem mais sobreviver. Os órgãos decisórios colegiados precisam ser fortalecidos, até mesmo como forma de impedir o exercício unipessoal com débeis traços democráticos, vide as apreciações de suspensão de liminares. As instituições públicas não são produtos; logo, as suas assessorias de imprensa não necessitam pensar em propaganda.
Enfim, é preciso ficar claro é que o valor Justiça não pode ser domado pela lógica econômica, o que impõe uma diuturna vigilância de todos. E essa atenção contínua e permanente se justifica por algo óbvio, que, muitas vezes é olvidado pelos domesticados pelo discurso econômico, as vidas humanas são muito mais que números e não possuem preço.
EDUARDO NEWTON é mestre em direito pela UNESA e Defensor Público no estado do Rio de Janeiro/RJ
[i][i] A matéria é objeto da Portaria CNJ nº 61, de 31 de março de 2020, que institui a plataforma emergencial de videoconferências para a realização de audiências e sessões de julgamento nos órgãos do Poder Judiciário, no período de isolamento social, decorrente da pandemia Covid-19.
[ii] KORTEN, David C. Quando as corporações regem o mundo. Consequências da globalização da economia. São Paulo: Futura, 1996. p. 75
[iii] ORDINE, Nuccio. A utilidade do inútil. Um manifesto. Rio de Janeiro: Zahar, 2016. p. 109
[iv] BOFF, Leonardo. O despertar da águia. O dia-bólico e o sim-bólico na construção da realidade. Edição Especial. Petrópolis: Vozes, 2017. p. 39.
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O articulista tocou num ponto estratégico. Será que todo o trabalho pode ser reduzido a números? A quantidade de sentenças proferidas por um juiz atesta apenas… a quantidade de sentenças por ele proferidas. Será que o ideal de pacificação social foi (pelo menos) tangenciado? Do mesmo modo, a quantidade de prisões efetuadas pelo aparelho policial refletem o quê senão a vida em uma desigual e doente.
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