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O haitiano e o presidente: entre o insuportável e o desejo

por Mariana Anconi

Um haitiano apareceu em um vídeo que viralizou na internet proferindo palavras ao presidente: “Você não é mais presidente. Acabou Bolsonaro”. Tanto o conteúdo quanto a forma em dizê-lo chamaram a atenção. Com voz calma e tom sereno, o estrangeiro falou como um mensageiro de outro tempo.

O lugar do estrangeiro na cultura sempre desperta afetos: ódio, amor, angústia… Enquanto alguns vociferam: “volta para o seu país!”; outros desejam saber mais sobre sua história, numa tentativa tornar equivalentes as diferenças. A presença do estrangeiro faz lembrar que ele é o produto de uma outra cultura. Um país produz seus próprios estrangeiros.

A mensagem do haitiano trouxe um visível desconforto aos presentes. Produziu um efeito de corte no estado de transe do grupo. Por alguns segundos, as certezas ficaram em suspenso, até que vozes indignadas aparecessem.

Na psicanálise, o lugar de estrangeiro é bastante explorado, inclusive para pensar aspectos do próprio sujeito. Afinal, há sempre essa pergunta desconcertante: o que esse outro, que me é estranho, diz sobre mim?

Para responder essa questão crucial, há uma travessia que inclui muitas daquelas que a psicanálise chamou de barreiras de resistência como a negação.

A negação é uma arma retórica poderosa de Bolsonaro. Diante da pandemia, a negação foi clara e objetiva. Pedir (para os que podem) que fiquem em casa não é o suficiente para a coletividade se o líder de parte não a corrobora.

Outro exemplo de negação está na diferença no tempo de ação para combater o vírus entre governos em diferentes países, o que nos revela que outros fatores estão em jogo, como a velha canalhice. Esconder e ocultar informação, vender ações e lucrar com a situação como aconteceu com um senador nos EUA, são velhos conhecidos (1).

O psicanalista Jacques Lacan (1901–1981) falou dos canalhas em dois trabalhos: Estou falando com as paredes, lição VII (1972) Televisão (1974). Em suma, Lacan sustenta que o canalha não deve ser aceito por um analista por vários motvios. Um deles poderia ser o seguinte: “penso que é preciso recusar o discurso psicanalítico aos canalhas: é certamente isso que Freud disfarçava com um pretenso critério de cultura. Os critérios de ética infelizmente não são mais seguros.(…) a análise deve ser recusada aos canalhas porque os canalhas se tornam burros, o que é certamente uma melhora, mas sem esperança para retomar seu termo.” Teixeira (2) nos dá outra situação: “o exemplo mais próximo, tão frequente em nossa triste época, é o pequeno canalha oportunista e ambicioso, que somente reconhece a experiência reversível do sucesso (demanda satisfeita) e do fracasso (demanda insatisfeita).

A fala do haitiano é a antítese da canalhice, já que carrega uma verdade estruturada em forma de ficção, afinal, as ficções sempre trazem notícia da realidade.

Goldenberg (3) afirma que o estrangeiro é sempre o potencial portador de uma verdade recalcada por determinada cultura. A condição estrangeira consiste em “permanecer na coletividade sem recalcar o mesmo significante. E, exatamente, esse significante funciona para o resto do grupo, como retorno do recalcado.

A verdade da mensagem de sotaque haitiano para o Brasil foi insuportável para uns e a realização de um desejo para outros. O estrangeiro carrega consigo cartas e as revela. Diferente do canalha que as oculta em benefício próprio.

A mensagem coloca em suspenso as certezas delirantes, revelando uma verdade em estado latente. Mais importante que chegar em seu destinatário (que a nega) é o efeito que produz naqueles que se deixam despertar, quem sabe a tempo.

MARIANA ANCONI é psicóloga, psicanalista e mestre pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP)

____________

(1)https://www.google.com/amp/s/www.nytimes.com/2020/03/20/opinion/coronavirus-burr-loeffler-stocks.amp.html

(2)https://revistacult.uol.com.br/home/politica-classes-e-singularidade/

(3)Goldenberg, R. Estrangeirismo: modo de usar. In: Koltai (org). O estrangeiro. São Paulo: ed. Escuta, 1999.

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