por Paulo Silas Filho

Lembrar é preciso. Tudo aquilo que permanece na memória constitui parte do próprio ser. A reunião de todas as lembranças que possuímos é, inclusive, uma das formas de se estabelecer o ‘eu’, a pessoa, o ‘o que sou’ – mesmo ao considerar as possibilidades que essa forma de definição pode levar. O acúmulo de experiências, todas elas, decorrentes dos nossos dias vividos, é o que nos representa enquanto o alguém – aquele alguém determinado, próprio, característico, único. Daí que as recordações podem ser apontadas como elemento essencial para todos nós que somos humanos, demasiados humanos.
Somos frutos de nossas próprias experiências. A formação do ‘eu’ enquanto sujeito, enquanto indivíduo, possui como uma das suas bases a estruturação que vai se consolidando na medida em que fatos são vivenciados, experimentados e sentidos, passando a compor aquilo que se tem por memórias, lembranças, recordações.
Semelhantemente ocorre no coletivo. Em que pese obedeça a uma dinâmica própria, as lembranças que constituem o todo, o corpo social, a comunidade, também representam a base de um algo que, dentre as tantas formas pelas quais pode ser compreendido, fornece os elementos para aquilo que podemos chamar de ‘cultura’. Essa espécie de lembrança coletiva funciona ativamente na transmissão de ideias, de saberes, de ensinamentos. Não é por menos que o biólogo Richard Dawkins aborda esse fenômeno enquanto algo que funcionaria como uma espécie de replicador – ao que denominou de ‘meme’. Para o referido autor, “a transmissão cultural é análoga à transmissão genética, no sentido de que, apesar de ser essencialmente conservadora, pode dar origem a uma forma de evolução” (DAWKINS, 2007, p. 325). Os memes, que seriam uma espécie análoga aos replicadores genéticos, mas operando no âmbito cultural, funcionam assim com a transmissão desse “caldo cultural” que existe no coletivo e prossegue de pessoa para pessoa, de geração para geração. É o saber, pelas suas diversas formas de busca de compreensão da realidade (mitologia, religião, filosofia, ciência, arte, senso comum…), enquanto tal – em seu nível mais abstrato possível.
Nesse âmbito, as lembranças fazem parte da história. São as recordações buscadas, organizadas, catalogadas e transmitidas a partir dos tantos métodos históricos possíveis existentes que constituem esse algo prévio que nos define enquanto humanidade – tanto no individual como no coletivo. Os relatos que resgaram a memória nos fornecem exemplos concretos de experiências antigas que muito tem a ensinar. Dentre as formas de se contar o passado, aquilo que já foi mas que ao mesmo tempo faz parte do que é, há aquela que busca nos próprios relatos das verdadeiras testemunhas a transmissão de recordações, principalmente as trágicas, traumáticas, chocantes e tristes – tal como faz Svetlana Aleksiévitch, a Nobel de Literatura de 2015. Essa espécie de lembrança tem muito a ensinar.
As lembranças importam muito mais que o esquecimento. O próprio ato de esquecer inclusive é seletivo, quando não meramente casuístico e, principalmente, apenas aparente. O que se ganha efetivamente em esquecer? A indagação pode receber diversos contornos. Registro então que o questionamento aqui feito é pontual e lançado no nível do abstrato, merecendo análises e reflexões mais específicas e profundas em casos e situações particulares – no nível individual e no âmbito de definições e saberes próprios. De modo geral, pergunto sobre o que deve se compreender especificamente pelo chamado direito ao esquecimento. Uma coisa é o respeito ao passado que deve permanecer enquanto tal, mas jamais deixando de assim permanecer. Outra coisa é relegar o outrora a ponto de fadá-lo à inexistência, seja pretensiosamente ou não esse esquecimento ardiloso.
A literatura é um rico campo a partir do qual se pode explorar essa problemática das lembranças e do esquecimento. Cito aqui o livro “O Gigante Enterrado”, do Nobel de Literatura Kazuo Ishiguro, em que o esquecimento é o elemento central da história.
Na referida obra, há um enfoque no aspecto emocional que ganha relevo na escrita do autor. Não é por menos que a “grande força emocional” foi mencionado como um dos motivos que levou Kazui Ishiguro a receber o Nobel de Literatura em 2017. Essa força é vista constantemente presente no romance que é repleto de figuras de linguagem, confessadas ou disfarçadas, que dialogam com o leitor a todo instante na medida em que a bela e cativa história avança. O livro é um convite para uma imersão numa bela e comovente trama que toca a alma daquele que o lê.
A história se passa no medievo. Axl e Beatrice constituem um simpático e amoroso casal de idosos que vivem numa pequena localidade, recordando pouca coisa de suas vidas, mas unidos fortemente pelo amor que os envolve. O casal sente muita falta de um filho que se mudou para outro lugar, sentindo que já passara muito tempo desde a última vez em que se viram. O casal sente como fosse uma espécie de chamado que faz com que deixem o vilarejo em que habitam e partam rumo a moradia do filho. Assim inicia a jornada de Axl e Beatrice, bem como da grande trama da obra. Não apenas o casal é acometido pela ausência de memórias. Todos os habitantes daquela região sofrem com o mal da perda de memória. As coisas são esquecidas, não há mais recordações fidedignas de eventos passados. Pessoas, fatos e coisas simplesmente se esvaecem como uma névoa. A propósito, é justamente uma névoa que paira sobre todo o ambiente que é apontada como a responsável pelo esquecimento coletivo. Contam que a névoa é produzida pelo respiro de uma dragoa e que há um feitiço nesse processo que faz com as memórias se percam. A dragoa é a responsável pela ausência de lembranças, portanto. Enquanto seguem viagem, o casal de idosos acaba se encontrando com um cavaleiro que segue numa importante missão não revelada desde o início, mas que parece estar ligada a empreitada de acabar com a névoa do esquecimento, e para isso, só existe uma forma aparente: enfrentar a dragoa. É essa viagem, repleta de intempéries, de fábulas, de seres fantásticos, de lutas, de aflições, de magia, de resignação, que o leitor acompanha em “O Gigante Enterrado” – um livro que trata do amor, do companheirismo, da guerra, do medo e, também e principalmente, da memória, individual e coletiva, das lembranças e da importância dessas.
É melhor lembrar ou há situações em que o esquecimento pode ser conveniente e salutar? Qual o papel que a memória desempenha para a coletividade? E para a individualidade? Essas e outras questões são enfrentadas a contento na obra de uma forma que somente a boa literatura pode proporcionar. O êxito de Kazuo Ishiguro é múltiplo, pois consegue estabelecer uma excelente narrativa enquanto também dialoga refletindo com essas e outras importantes questões para o indivíduo e(m) sua coletividade. Um romance que faz com que o tema seja refletido a contento. Como bem aponta Eduardo Veronese ao analisar a obra, “talvez sejam poucas as oportunidades de interpretar e reinterpretar um fenômeno dotado de grande relevância jurídica a partir da leitura de somente uma obra. E a leitura de O Gigante Enterrado possibilita tal experiência, sobre a temática do esquecimento de maneira inigualável” (VERONESE, 2018, p. 96).
Se a literatura está mais do que apta para tratar das lembranças e do esquecimento, questiona-se o Direito nesse mesmo sentido: estaria o jurídico preparado para tratar adequadamente das questões que dizem respeito ao passado? O debate que hoje é feito sobre o direito ao esquecimento é responsável e leva em conta todos os fatores presentes nessa articulação entre as lembranças dignas e as (assim ditas) descartáveis? Até que ponto alguma forma de esquecimento é salutar e quando a proposta passa a ser problemática? São questões que merecem ser abordadas e trabalhadas não com frivolidade, mas com a importância que merece o tema.
Talvez os grandes casos midiáticos constituam um bom ponto de partida para se estabelecer o diálogo sobre a questão. Seja como for, o que jamais se pode cogitar é uma negação do ocorrido ante a sua condenação ao esquecimento, sob pena de o Ministério da Verdade, da grande obra “1984”, de George Orwell, surgir como uma boa ideia enquanto proposta.
Exige-se responsabilidade em lidar com o passado, pois jamais se pode apagá-lo, uma vez que ínsito das lembranças, das recordações, da memória – individual e coletiva. É certo que “somos construídos como máquinas de genes e educados como máquinas de memes, mas temos o poder de nos revoltar contra os nossos criadores” (DAWKINS, 2007, p. 343). É daí que se diz do relevo da discussão sobre o tema. Por um lado, o problema do esquecimento, tal como visto na película “Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças”. Por outro, o problema da chaga que pode surgir como consequência de não tratar e compreender a memória enquanto tal. Eis o desafio travado ao se falar no tal direito ao esquecimento.
PAULO SILAS FILHO é professor de Direito na Universidade do Contestado (UnC) e na UNINTER, mestre em Direito e advogado
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REFERÊNCIAS
DAWKINS, Richard. O Gene Egoísta. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
ISHIGURO, Kazuo. O Gigante Enterrado. 1ª Ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.
VERONESE, Eduardo Rafael Petry. A linha tênue entre anistia, amnésia e o direito ao esquecimento: análise de “O Gigante Enterrado”, de Kazuo Ishiguro. In: VERONESE, Josiane Rose Petry. Olivas da Aurora: direito e literatura. Florianópolis: EMais, 2018.
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