por Mariana Anconi

O filme abre com uma homenagem à tia Lucia que, já no inicio, dá o tom de subversão em relação ao lugar da mulher “de idade”. Os flashbacks de tia Lúcia durante uma reunião de família são de cenas de sexo nos cômodos da casa; desvelam a mulher que está além do imaginário sobre a velhice que não transa. ⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀
Sexualidade, corpo, envelhecimento, gozo, memória, capitalismo e resistência. Ingredientes escolhidos pelo diretor Kleber Mendonça para constuir uma narrativa complexa que põe em cena o panorama do Brasil atual. ⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀
Um filme que não se esquiva do mal estar. Apresenta como problema central a luta entre Clara e a construtora Bonfim. Clara se recusa a vender o apartamento à construtora, passando a morar no que chamam de prédio-fantasma. ⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀
O maior fantasma do filme consiste na fantasia de que com dinheiro é possível eliminar o gozo do outro. ⠀
O filme provoca muitos incômodos e balança as estruturas da hipocrisia presente na ideia da “moral e dos bons costumes”. Traz cenas que abordam o racismo e o preconceito no contexto da diferença entre classes. Uma cena que passa quase despercebida: o neto de Clara ao escolher fotos no album de familia para seu casamento, utiliza um aplicativo para clarear sua pele na foto. ⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀
No decorrer do filme, vamos entendendo que a luta da protagonista é tambem uma luta por um espaço, um lugar. Clara é livre e nem um pouco moralista. Sua liberdade incomoda. Sonia Braga – grandiosa – encarna o corpo de uma mulher que lutou contra um câncer quando jovem e agora precisa lutar pelo seu apartamento. Mas, o que esta em jogo nessa luta? ⠀⠀⠀
A casa é uma boa metáfora para pensar o espaço do corpo. O corpo marcado por memória, desejo e gozo. Seu apartamento é espaço de dialogos e crises. Uma especie de lugar “extimo” à cidade. Perdê-lo, naquele momento é também perder – mais uma – parte de si. ⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀
Clara goza em diversos niveis. Sua vida confortável, seu privilegios, uma vista para a praia, as amigas, os encontros casuais. Poderiamos perguntar: O que quer uma mulher?
Pergunta revolucionária feita por Freud as mulheres ao decidir escutá-las – no inicio do sec XX – que reposiciona o lugar da mulher, como sujeito de desejo.
O que Clara quer? Alguns amigos sustentaram essa pergunta trazendo uma potência a resistência de Clara a invasão de seu espaço.
Invasão ao espaço (seja o corpo ou a casa) está representada no filme de diversas maneiras como o câncer e o cupim que corrói as estruturas do apartamento. Clara resiste.
A construtora, além de querer desapropriar Clara de seu apartamento, parece querer algo a mais: desapropriá-la de seu desejo.
O filme se transforma em um manifesto de uma luta pela apropriação do espaço-corpo, incluindo seus modos de gozo.
MARIANA ANCONI é psicóloga, psicanalista e mestre pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP)
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