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E o cara ganhou mais de R$ 1 milhão em férias: há orçamento para que(m)?

por Samuel Brito

Na virada do século, perante a efervescência das informações ocasionadas pela globalização –, e até mesmo pelas fake news que diziam que “mil passará, mas dois mil não chegará” – parte do povo estava atormentado. De outro lado, os esperançosos –, afinal para alguns, já estaríamos com carros voadores e curando o câncer em 2020. Infelizmente, sequer conseguimos curar o preconceito.

Diante tantas mudanças, surge um clássico do cinema que retrata tais indagações –, a trilogia Matrix em 1999. Afinal, através destas mudanças globais – o Mundo se tornou sem fronteiras, razões pela qual, houve a eminência da cidadania cosmopolita[1].

A menção a essa nova cidadania –, consiste na questão: “agora existe uma cidadania sem nação?”. Estamos em tempos de bens indisponíveis em nível Mundial. Assim, há uma reflexão de valores –, qual a Matrix nos alerta. O que, somente é possível ao escutarmos o conselho feito pelo Oráculo a Neo: “conhece-te a ti mesmo”.

No caso de Neo, isso somente foi possível –, pois o primeiro passo foi dado. Isto é, a pílula vermelha. Caso tomasse a pílula azul – acordaria em sua casa, e continuaria vivendo uma ilusão – como Thomas A. Anderson, enxergando a realidade da mesma forma – senso comum; enquanto no fundo, haveria uma inquietação constante que somente aumentava e o atordoava. A mesma inquietação dos criminalistas perante uma nulidade não reconhecida, pois a Defesa “não demonstrou o prejuízo”. Do mesmo modo, sentimos tal inquietação, com a suspensão do Juízo de Garantias –, cujas observações já foram tratadas nessa Coluna pelo Professor José Santiago[2], e por este que vos escreve[3].

Nessa pegada, hoje vamos um pouco além –, pois ao efeito da pílula vermelha, nos libertaremos da prisão mental mencionada por Morpheus em Matrix, onde não podemos ver, sentir ou tocar. Porém, em tempos de mudanças efervescentes, devemos –, ao menos no Brasil, abraçar o Juiz de Garantias com um significado além de uma mera legislação – sendo, um paradigma para superação da mentalidade inquisitiva.

Vivenciamos um marco histórico, eis que determina a superação das ideologias atribuídas por duas ditaduras. De certo, houve inúmeros reparos para “adequar-se” a Constituição. Porém, a essência inquisitiva permanece! Portanto, assim como Morpheus, não lhe prometemos nada –, além da verdade; e muita coisa, ainda precisa ser feita.

Por assim ser, em se tratando de reforma –, ao menos, em tese[4]. Indaga-se, qual a primeira reforma realizada? A da Previdência Social –, atingindo os mais pobres e oprimidos de imediato. Dito –, primeira, pois de certo, uma reforma era necessária.

Dito isso, as concepções de Miguel Reale em fato, valor e norma. Então, como fato – a Constituinte de 1987-1988, que repassou seus valores –, convertidos em normas – Constituição Federal. Conhecida também, como Carta Cidadã.

Nessa concepção, a opção supracitada como primeira não se assemelha aos valores democráticos –, sendo específico, quando o Preambulo Constitucional faz menção “[…] a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna […]”. Pois, enquanto temos cortes na educação como medida necessária[5], a algumas instituições vem batendo recordes em seus lucros[6].

A título de exemplo, sobre as opções/escolhas supracitados –, alguns países instituíram o Imposto sobre Grandes Fortunas (IGF), seja de forma temporária ou definitiva –, o que no Brasil sequer é cogitado, embora esteja previsto constitucionalmente. Afinal, abordado aqui – a visão do IGF, como “mecanismo de redução da desigualdade na distribuição da renda e planejado dessa forma”, em consonância com o parecer consultivo apresentado para a Câmara dos Deputados em 2015[7].

Mas não é a reforma tributária que nos interessa –, porém, a sua ausência demostra a desconexão dos valores constitucionais na prática. E somente por isso – tal tema, foi elencado. Lembrando, que está aqui é a pílula vermelha.

Do mesmo modo, a visão deve ser reajustada para reforma administrativa –, aliás, em tempos de efetivação do Juiz de Garantias, será necessário. Até porque, não é questões orçamentárias que interessa? Pelo visto, foi esse – o ponto importante para suspender por tempo indeterminado a efetivação desse alicerce constitucional[8]. Da mesma forma foi considerado como “incompatível” em 2010 –, agora agregado ao relatório do Conselho Nacional de Justiça realizado em 2018 –, cujo demonstrativo elenca que 19% das varas de Justiça Estadual funcionam com apenas um Juiz[9]. Lembrando, que Rui Barbosa já avisava que “justiça tardia nada mais é do que injustiça institucionalizada”.

Após essa observância, não negamos que a efetividade do Juízo de Garantias aumentará o quadro de servidores, portanto, devemos reconhecer nossas limitações[10]. Continuando, reconhecemos, é humanamente impossível que o número de servidores atual – deem conta das demandas existentes –, essa é a realidade.

Porém, também é realidade que onde falta orçamento para contratar mais –, existe um que recebeu R$ 1.251.328,5 de “vantagens eventuais” – isso é, em novembro de 2019[11]. Sendo assim, questiono-lhes – quantos outros Juízes de Garantias não seria possível contratar com este valor? Isto é, as questões orçamentárias mencionadas pelo Ministro Luís Fux fossem realmente efetivadas.

Infelizmente, Renato Russo já avisava que ninguém respeita a Constituição –, e como necessitamos de mais Juízes – por consequência, de mais promotores também. Cabe lembrar, que um ex-Procurador Geral de Justiça, recebeu no mesmo mês que o Juízo de Garantias foi suspenso por questões orçamentárias – cômico, senão fosse trágico. Enfim, recebeu o valor de R$ 1.060.919,64 de “férias indenizatórias” em janeiro de 2020[12].

Obviamente, com estas remunerações excessivas – por assim dizer, com máximo respeito, eis que notoriamente são funções que exercem um múnus publico inquestionável. Todavia, os valores apresentados fogem de quaisquer razoabilidade ou proporcionalidade em uma análise Constitucional.

Indo além, o projeto de lei que instituiu o Juízo de Garantias –, para qual não tem orçamento – é totalmente incoerente. Afinal Bobbio já falava que se em um ordenamento vem existir normas incompatíveis –, uma destas deve ser eliminada. Suplico, que os valões Constitucionais sejam lembrados ao momento de interpretar a norma, como ensinava Miguel Reale.

A partir disso, o Brasil tem a terceira maior população carcerária do mundo[13] – cujo, o limite do cumprimento da pena privativa de liberdade era de 30 anos – e assim, teve a declaração do Inferno de Dante do sistema carcerário em 2015[14]. Fato notório, qual a solução adotada para tal inferno –, foi enchê-lo mais, elevando o limite do cumprimento da pena para 40 anos.

Acerca do tema, imperioso destacar que a Ministra Carmen Lúcia sintetizou que alguma coisa está errada em nossa pátria, ao se deparar a informação que “um preso no Brasil custa R$ 2.400 por mês, e um estudante de ensino médio custa R$ 2.200 por ano[15]. Isto é, um preso equivale a treze estudantes de ensino médio ao mês aos cofres públicos!

Em suma, a solução do aumento do limite da pena em fins orçamentários significa –, para cada ano que um detento fique além do anteriormente previsto – 30 anos, restará comprometido um gasto equivalente a 166 estudantes do ensino médio.

Por isso –, é bom lembrar. Estamos em tempos de reforma? Sim.

Então, tome sua pílula vermelha. Afinal, essa coluna já está ficando extensa e ainda tem muita coisa a ser dita, mas com as poucas incoerências demonstradas – algo é nítido: repensar nos valores é o que nos resta. Que o leitor seja capaz de ir além da cortina de fumaça –, pois existe ordem e progresso quando o povo tem acesso ao ingresso. Se, o orçamento é questão de escolhas –, quais escolhas são estas? Aliás, quais são os valores que definem às normas? Eis a questão. Pois, estas escolhas – normas, são a forma da instituição demonstrar o poder que emana do povo –, sendo direto, que emana de você.

Cuidado, essa é a Matrix. Conhece-te a ti mesmo, e assim –, chegará à toca do Coelho.

SAMUEL BRITO é advogado, especialista em Ciências Criminais pela PUC/Minas e EM Diretos Fundamentais pela IBCcrim/Universidade de Coimbra


[1] DIAS. Paulo Joaquim Borges Linhares. Mundialização e Multiculturalismo e a Refundação do Conceito de Cidadania – Uma Cidadania sem Estado?. Trabalho apresentado no seminário Humanização do Direito Internacional do 3º Ciclo de Estudos em Direito – Doutoramento em Direito Público – da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, sob orientação da Professora Paula Veiga. 2017, p. 18-17.

[2] SANTIAGO NETO, José de Assis. A Implementação do Juízo de Garantias e a Potencialização do Contraditório no Processo Penal: primeiras reflexões após a publicação da lei 13.964/2019. Disponível em: https://emporiododireito.com.br/leitura/a-implementacao-do-juizo-das-garantias-e-a-potencializacao-do-contraditorio-no-processo-penal-primeiras-reflexoes-apos-a-publicacao-da-lei-13-964-2019. Publicado em 10.01.2020. Acesso em 14.01.2020.

[3] BRITO. Samuel Firmino de. Então, faremos um Juízo de Garantias!. Disponível em: https://emporiododireito.com.br/leitura/entao-faremos-um-juizo-de-garantias. Publicado em 31.01.2020. Acesso em 31.01.2020.

[4] SCHUCH, Matheus. TRUFFI, Renan. CUNTO, Raphael Di. Ribeiro, Marcelo. LIMA, Vandson. MURAKAWA, Fábio. PERON, Isadora. Governo deixa reforma administrativa de fora das prioridades de 2020. Disponível em: https://valor.globo.com/politica/noticia/2020/02/03/governo-deixa-reforma-administrativa-de-fora-das-prioridades-de-2020.ghtml. Publicado em 03.02.2020. Acesso em 03.02.2020.

[5] ARCOVERDE. Léo. Orçamento do governo federal prevê cortes para educação básica em 2020. Disponível em: https://g1.globo.com/educacao/noticia/2019/09/13/orcamento-do-governo-federal-preve-cortes-para-educacao-basica-em-2020.ghtml. Publicado em: 13.09.2019. Acesso em 06.02.2020.

[6] TAKAR. Téo. Lucro dos 4 maiores bancos bate recorde, sobe 20% e vai a R$ 69 bilhões. Disponível em: https://economia.uol.com.br/noticias/redacao/2019/02/14/lucro-dos-maiores-bancos.htm. Publicado em 14.02.2019. Acesso em 06.02.2020.

[7] SILVA. Jules Michelet Queiroz e. Imposto sobre grandes fortunas, fuga de capitais e crescimento econômico. Disponível em: https://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/estudos-e-notas-tecnicas/publicacoes-da-consultoria-legislativa/areas-da-conle/tema20/2015-5979-imposto-sobre-grandes-fortunas-e-fuga-de-capitas-jules-michelet. Publicado em maio de 2015. Acesso em: 03.02.2020.

[8] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Medida Cautelar na Ação Direta de Inconstitucionalidade 6.299 – Distrito Federal. Disponível em: https://www.conjur.com.br/dl/fux-liminar-juiz-garantias-atereferendo.pdf. Acesso em 04.02.2020.

[9] BARBIÉRI, Luiz Felipe. TORRES, Heloísa. Estudo do CNJ de 2010 concluiu que juiz de garantias era ‘incompatível’ com estrutura da Justiça. Disponível em: https://g1.globo.com/politica/noticia/2020/01/11/estudo-do-cnj-de-2010-concluiu-que-juiz-de-garantias-era-incompativel-com-estrutura-da-justica.ghtml. Publicado em 11.01.2020. Acesso em 14.01.2020.

[10] BRITO. Samuel Firmino de. Então, faremos um Juízo de Garantias!. Disponível em: https://emporiododireito.com.br/leitura/entao-faremos-um-juizo-de-garantias. Publicado em 31.01.2020. Acesso em 31.01.2020.

[11] Autor Desconhecido. Juíza recebe mais de R$ 1,2 milhão em remuneração no mês de novembro. Disponível em: https://economia.ig.com.br/2019-12-11/juiza-recebe-mais-de-r-1-milhao-em-remuneracao-no-mes-de-novembro.html. Publicado em 11.12.2019. Acesso em 02.02.2020.

[12] GLOBO. Após se aposentar, ex-procurador geral de Justiça recebe mais de R$ 1 milhão só de férias: Somando a remuneração e verbas indenizatórias, o valor total ultrapassa R$ 1,6 milhão. José Omar de Almeida se aposentou em dezembro do ano passado. Disponível em: https://g1.globo.com/to/tocantins/noticia/2020/01/31/apos-se-aposentar-ex-procurador-geral-de-justica-recebe-mais-de-r-1-milhao-so-de-ferias.ghtml. Publicado em: 31/01/2020. Acesso em 04.02.2020.

[13] REIS, Thiago. Velsaco, CLARA. Com 335 pessoas encarceradas a cada 100 mil, Brasil tem taxa de aprisionamento superior à maioria dos países do mundo. Disponível em: https://g1.globo.com/monitor-da-violencia/noticia/2019/04/28/com-335-pessoas-encarceradas-a-cada-100-mil-brasil-tem-taxa-de-aprisionamento-superior-a-maioria-dos-paises-do-mundo.ghtml. Publicado em: 28.04.2019. Acesso em 04.02.2020.

[14] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADPF 347-MC. Relator: Min. Marco Aurélio, Tribunal Pleno. Disponível em: https://www.conjur.com.br/dl/adpf-situacao-sistema-carcerario-voto.pdf. Julgado em 09.09.2015. Publicado em 19.02.2016. Acesso em 05.02.2020.

[15] Folha de São Paulo. Preso custa 13 vezes mais do que estudante, diz Cármen Lúcia. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2016/11/1831360-preso-custa-13-vezes-mais-do-que-estudante-diz-carmen-lucia.shtml. Publicado em: 10.11.2016. Acesso em 04.02.2020.

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