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Por que é preciso ver Bacurau?

por Mariana Anconi

Os diretores anunciam: a história se passa daqui alguns anos… isso já lança o espectador num limbo temporal, afinal, essa poderia ser uma metáfora para o Brasil atual.

A imagem do planeta Terra abre o filme atualizando o paradoxo da nossa existência: tão grandes e ao mesmo tempo tão pequenos. A lente aproxima e, chegamos a Bacurau.

Uma cidade que vive o luto da perda de uma mulher importante, Teresa, que ao que parece, fez política ali. Logo em seguida, um professor tenta mostrar às crianças onde Bacurau está no mapa. Espanto. Não está lá. Como explicar isso às crianças que são o futuro da comunidade? Bacurau perde sua representação territorial no mapa. Começa, então, a luta para sustentar a representação psíquica daquele espaço que lhes resta.

A partir dali, tudo parece incerto, mortes e buracos de bala surgem e dão o tom de ameaça àqueles que já não tinham um lugar no campo do discurso social. Na verdade, Bacurau já estava esquecida pelas políticas públicas, sabe-se lá há quanto tempo.

Ocupar o lugar invisível aos olhos do poder público produz caos. Os habitantes operam na lógica de que para sobreviver, às vezes é preciso mesmo desaparecer. Os corpos desaparecem de vista quando, por exemplo, o prefeito chega com “donativos” para ganhar votos; ou quando os caçadores chegam famintos. Qual a diferença entre eles?

O filme pode ser lido como um fechamento de uma trilogia que começou com O som ao redor (2012), Aquarius (2016) e finaliza em Bacurau (2019). Aquarius merece uma “resenha” (ou não-resenha) só pra ele. Um filme visceral que revela a tentativa de desapropriar Clara não só de seu apartamento, mas de seu desejo. .

Os dois filmes falam da apropriação dos espaços; seja um apartamento, como em Aquarius; uma comunidade, como em Bacurau; ou um corpo, como nos dois filmes.

Em todos eles, há um aspecto do estrangeiro no enredo. O estrangeiro é uma nomeação dada por um outro. Pressupoe uma referência que ultrapassa limites territoriais, linguageiros, culturais, etc. Não precisa ser de tão longe para ser estrangeiro. Às vezes basta se assustar com a própria sombra. Olhar-se no espelho. Tropeçar nas palavras.

Dentre as inúmeras leituras possíveis dos símbolos expostos no filme, destaco aqui os caixões vazios na estrada como um prenúncio do que está por vir, e o disco voador, simulacro do que representa o fascínio e o horror em relação ao desconhecido, ao “objeto não-identificado”.

Os personagens sudestinos estão tomados pelo fascínio ao estrangeiro, se veem mais próximos dos americanos do que aqueles de sua “pátria amada”. Tentam mimetizar a língua, a cor e traços. Entregam seus corpos e de outros (os de Bacurau). Fracassam em seu ódio direcionado ao outro que retorna contra si mesmos.

Algo disso espelha a prevalência da necropolítica trabalhada na obra de Achille Mbembe: “a expressão máxima da soberania reside em grande medida, no poder e na capacidade de ditar quem pode viver e quem deve morrer”, motivo pelo qual “matar ou deixar viver constituem os limites da soberania, seus atributos fundamentais.”

A dis-solução da narrativa acontece com o chamado de alguém que estava fora, mas não totalmente: Lunga. A comunidade se reúne e precisa expulsar o estrangeiro com outro estrangeiro: o que habita a cada um. Uma pílula e algumas coisas se transformam. É preciso ser outro para, então, ser o mesmo.

MARIANA ANCONI é psicóloga, psicanalista e mestre pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP)

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