por Paulo Ferrareze Filho

A arquitetura e o tamanho das edificações podem servir para revelar os paradigmas que vigoraram em cada época. Na idade média as igrejas eram as maiores construções porque refletiam uma sociedade altamente religiosa. A partir do iluminismo, iniciou-se um longo e inconcluso projeto de laicização do Estado. Por isso, nesse período, os castelos ultrapassaram as igrejas em tamanho. Atualmente, igrejas e castelos acabaram minúsculos perto dos portentosos shoppings e dos grandes edifícios de escritórios. Mais uma vez o paradigma de uma época está bem representado na arquitetura. É também assim que a supremacia da economia e da cultura do consumo podem ser diagnosticados socialmente.
O início dessa cultura remonta à metade do século XIX europeu. Além da consolidação das máquinas no processo produtivo, é desse período o aparecimento das vitrines, dos grande cartazes nas feiras e das primeiras lojas que surgiram na Europa, em geral ofertando objetos antigos ou já sem uso.
Desde lá, Marx já constatava o inebriamento causado pelo consumo de bens: “nas ruas mais animadas de Londres, os estabelecimentos sucedem-se uns aos outros, e atrás do vidro de suas vitrinas oferecem-se tentadoras todas as riquezas do universo: xales da Índia, revólveres americanos, porcelanas chinesas, espartilhos de Paris, peles da Rússia e outros produtos dos trópicos”. [1]
Consolidada a revolução industrial no início do século XX, a estratégia da divisão do trabalho e das linhas de montagem, tão bem retratadas e criticadas em filmes como Metropolis e Tempos Modernos, fizeram do fenômeno da produção em massa a causa imediata daquilo que hoje converteu-se no que Bauman[2] chama de sociedade de consumidores.
A partir de uma leitura junguiana, a história de negação da matéria em detrimento do espírito, que também está relacionada com a história de negação dos aspectos femininos na cultura, é o que explica os excessos do consumo atual. Para essa corrente, o consumismo, que tem ares nitidamente materialistas, se dá como compensação do psiquismo coletivo na medida em que esses traumas históricos não só retornam para restabelecer uma nova consciência sobre tais temas, mas, ante a força de tantos anos de recalque, voltam patologizados. O consumismo, nessa concepção, é um efeito do retorno de um material cultural que permaneceu recalcado e que ora expressa-se destrambelhadamente.
Estratégias e sintomas
Nos alvores da publicidade e da propaganda, uma das estratégias magnas de cooptação de potenciais consumidores passava pelo direcionamento das propagandas às mulheres. Pensava-se que o consumo era o meio pelo qual as mulheres, historicamente tolhidas de quase todos seus desejos, podiam provar certos prazeres. Mulheres insatisfeitas a partir de casamentos insossos se converteriam em consumidoras-chave para alimentar o consumismo, deslumbradas e extasiadas em grandes magazines enquanto seus maridos cumpriam os deveres conjugais de provimento material.
Certo é que, atualmente, seja com homens ou mulheres, o consumo ascendeu imaginariamente à categoria de direito fundamental, assumindo a posição de um verdadeiro imperativo categórico capaz de conferir dignidade a determinados modos de levar a vida. Bauman é certeiro quando aponta que “para entrar na sociedade de consumidores e receber um visto de residência permanente, homens e mulheres devem atender às condições de elegibilidade definidas pelos padrões do mercado”.[3]Em determinados circuitos, por exemplo, se você não tiver determinada bolsa, carro ou mesmo uma adega climatizada, isso sem dúvida comprometerá parte de sua moral naquele contexto de gente insuportável.
Na medida em que os produtos passaram a ser produzidos em larga escala, necessário também que a sua consumação se dê com a mesma rapidez. A indústria da publicidade e da propaganda, que irrompeu nos Estados Unidos a partir da metade do século XX (o seriado Mad Man, do Netflix, é recomendadíssimo), é apenas uma espécie de desdobramento malandro para fazer com que a produção em massa possa ser consumida por outra massa, agora composta de pessoas.
A estratégia da obsolescência programada, que visa diminuir a durabilidade dos produtos consumidos, é o paroxismo desse fenômeno que mexe com a percepção do tempo (e por isso gera ansiedade), modifica substancialmente as relações de trabalho (e por isso as patologiza) e instaura um circuito vicioso de trabalho, produção e consumo.
Contemporaneamente, a psicopatologia do consumismo, ainda que afete mais uns do que outros, acossa a todos indistintamente. Nos extremos dessa escala, ou a dor será por não poder consumir, ou por se tornar escravo do consumo.
Apesar de soar simpático compartilhar vídeos de Pepe Mujica, ex-presidente do Uruguai e símbolo do anti-consumismo no mundo, é difícil ser e agir como ele, que vive de modo absolutamente modesto. Em diversas entrevistas, Mujica refere que os 15 anos de prisão durante a ditadura uruguaia, serviram para pensar com calma sobre aquilo que realmente importa na vida. A natureza humana precisa de tempo para operar milagres em si mesmo, exatamente como fez Mujica na prisão.
A estimulação do consumo associado à concorrência é um dos principais fundamentos do neoliberalismo capitalista. O caráter psicopatológico ligado ao social não está no simples ato de consumir, já que biologicamente imperioso, mas na supremacia a que o consumo foi alçado no rol de prioridades existenciais. Consumir bens para além da possibilidade de uso ou por caprichos egoístas, são sintomas desse cenário patológico. O próprio modelo workaholic, cada vez mais contestado, induz a que o consumo seja uma espécie de álibi ou de compensação pelo fato de se trabalhar demais. “Trabalho tanto, então mereço consumir” é o lema que embasa esse diagnóstico. No limite, o consumismo é o desdobramento da premissa neoliberal que faz da economia a dimensão reitora de um dado corpo social.
Bauman aponta um astuto argumento para justificar a formação da sociedade de consumidores: o de que, no fundo, o consumo não restringe-se a um meio de fazer com que empresas lucrem vendendo seus produtos. O que essa cultura acaba impondo sem que todos percebam é o fenômeno de comodificação do consumidor, ou seja, a elevação da condição dos consumidores à de mercadorias vendáveis. Dito de outro modo: quanto mais alguém consome, mais consumível ele pode se tornar.[4]
Daí porque deve ser diferenciado o consumo do consumismo, já que este converte-se na expressão do excesso daquele. Quando as reportagens mostram filas imensas à espera de um último modelo de celular ou para as compras de Black Friday, é possível constatar que algo de exagerado existe na consciência social quando o assunto é consumir.
O aumento do interesse por cursos voltados ao marketing, à propaganda e aos mecanismos de venda e influência de consumidores, notadamente por meio da internet e das redes sociais, também são sintomas que conduzem ao diagnóstico de que o capitalismo neoliberal, desdobrado em necessidade de consumo, adquiriu aspectos patológicos.
O consumo por mero deleite está ligado ao prazer de vencer uma competição sádica em que os supostos ganhadores formam uma ilusória autoimagem de que são mais aptos ou VIPs que os outros. Essa silenciosa mas ferrenha competição, faz com que as pessoas não mais se comuniquem para que possam, os próprio objetos consumidos, falar entre si. Nesse novo pátio de silêncios humanos, bolsas, carros e celulares é que conversam. Não mais as pessoas.
A todo momento estamos sujeitos à desatenção de imaginar que certos consumos são necessários. Como substituto afetivo, o ato de consumir, impulsionado por uma busca narcísica de reconhecimento, acaba fazendo um sapato compensar um namorado perdido, um cachorro substituir o filho que não vem ou um amor barato ser trocado por um vício caro. A falta, constitutiva do sujeito para a psicanálise lacaniana, converte-se perversamente na impossibilidade de consumir.
No entanto, nada do que o consumo busca substituir é capaz de amenizar esse desalento psíquico. Conforme aponta Silva[5], o caráter compulsivo que está associado às compras assemelha-se à características sintomáticas dos dependentes químicos. O grande prazer daqueles que são acometidos de compulsão por compras – os oniomaníacos – está no ato de comprar, e não exatamente nos objetos comprados. Além dessa característica, os viciados em consumir costumam esconder as compras das pessoas mais íntimas, exatamente como fazem os alcoólatras ou os dependentes de outras drogas.
A compulsão também assume ares de infantilidade. Não sem razão que as crianças são alvos fáceis na cultura do consumo. O enredamento em que as crianças são envolvidas com brinquedos, imagens e significados comerciais é uma estratégia capciosa que a cultura do consumo impõe.
Conforme pesquisas da organização mundial da saúde (OMS), a oneomania ou TCC (transtorno do comprar compulsivo), atinge 5% da população mundial, sendo as mulheres as mais afetadas. Várias famílias são atingidas por essa doença, que está espalhada de maneira indistinta entre diferentes classes sociais. No Brasil, os dados do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas de São Paulo aponta que 3% da população brasileira (quase 6 milhões de pessoas) sofre dessa compulsão, que pode gerar pensamentos intrusivos, obsessões, sentimento de urgência, ansiedade, angústia e, em casos mais graves, depressão.
Saídas ?
Com o que Tolokonnikova[6] chama de ativismo monetário, apresenta-se quatro sugestões de conscientização, resistência e tratamento para a psicopatologia social do consumismo.
1o – É necessário viver dentro de nossas possibilidades econômicas. Não se pode gastar mais do que se ganha, ainda que se ganhe muito pouco. E quando, eventualmente, o máximo que se pode ganhar não oferece o mínimo, só uma revolução será capaz de mudar o cenário.
2o – É necessário evitar o uso de cartão de crédito. Use débito ou pague em dinheiro. A estratégia do mercado bancário é de estimular o crédito porque cada novo inadimplente converte-se em cliente de um novo produto bancário. Por isso as compras pagas em débito oferecem menos pontos para o comprador do que as pagas em crédito.
3o – É necessário controlar e saber quanto se gasta. Uma planilha detalhada poderá mostrar, por exemplo, o quanto se gasta com itens que aparentemente tem baixo custo. Esse esclarecimento de gastos é um diagnóstico que poderá direcionar estratégias de gastos e de consumo mais saudáveis e sustentáveis.
4o – O dinheiro que gastamos endossa os produtos que compramos. “Adquirir um produto é transmitir uma mensagem ao mercado, reafirmando o produto e seu impacto ecológico e seu processo de fabricação”, diz a ativista russa.
Fato é que o mercado precisa que as pessoas precisem. O mercado diz que as pessoas precisam de mais, nunca de menos. E essa pulsão diária, que nos assalta tanto as vistas quanto a alma, não acontece sem deixar marcas. Como aponta Quinet[7], “os imperativos da moda, do consumo, do utilitarismo e do capital não deixam lugar para o ínfimo, o desútil, o íntimo, o desver, o falho, a fala.”
As coisas desimportantes e o desútil talvez sejam uma espécie de antídoto contra os imperativos do consumo. Em suma a arte, ela mesma, pode ser uma terapêutica possível. Por isso, com a palavra final, o poeta Manoel de Barros:
Dou respeito às coisas desimportantes
e aos seres desimportantes.
Prezo insetos mais que aviões.
Prezo a velocidade
das tartarugas mais que a dos mísseis.
Tenho em mim esse atraso de nascença.
Eu fui aparelhado
para gostar de passarinhos.
Tenho abundância de ser feliz por isso.
Meu quintal é maior do que o mundo.
PAULO FERRAREZE FILHO é professor de Psicologia Jurídica (UNIAVAN), doutor em Filosofia do Direito (UFSC) e psicanalista em formação.
[1] MARX, Karl. Contribuição à crítica da economia política. 2. ed. São Paulo: Expresso Popular, 2008, p. 117.
[2] BAUMAN, Zigmunt. Vida para consumo: a transformação das pessoas em mercadoria. Rio de Janeiro: Zahar, 2008.
[3] BAUMAN, Zigmunt. Vida para consumo: a transformação das pessoas em mercadoria. Rio de Janeiro: Zahar, 2008, p. 82.
[4] BAUMAN, Zigmunt. Vida para consumo: a transformação das pessoas em mercadoria. Rio de Janeiro: Zahar, 2008, p. 76.
[5] SILVA, Ana Beatriz Barbosa. Mentes consumistas: do consumismo à compulsão por compras. 1a ed. São Paulo: globo, 2014, p. 10-11.
[6] TOLOKONNIKOVA, Nadya. Um guia Pussy Riot para o ativismo. São Paulo: Ubu Editora, 2019, p.41-44.
[7] QUINET, Antonio. A descoberta do inconsciente: do desejo ao sintoma. Rio de Janeiro: Zahar, 2000, p. 9.
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