por Renato Kress

Quando minha amiga Laura Ferreira me pediu para participar como debatedor na mesa sobre “Positividade Tóxica” da Primavera Literária 2019, minha cabeça entrou naquele turbilhão familiar que busca conectar toda forma de ideia, estímulo, referência, enfim, tudo o que me fizesse sentido ao redor do tema. A coisa vai se aglutinando na cabeça. Mas não estava formando um sistema coerente, eram ideias gravitando sem um eixo.
O que mais me incomodou foi a ideia do “tóxico”. Positividade em si, como qualquer outra potencialidade das posturas humanas, não é um problema. Desde que o texto encontre seu contexto. “Tudo a seu tempo e teremos tempo para tudo”, já dizia meu pai. A questão da positividade tóxica me lembrou imediatamente minha pré-adolescência e as revistinhas em quadrinho do Batman, onde o Coringa espremia uma flor amarela na lapela do seu terno lilás risca de giz e uma nuvem de pó envenenava quem estivesse por perto. A vítima gargalhava até morrer asfixiada, como num ataque mortal de cosquinhas.
Todo tipo de obrigação me deixa um sentimento nauseado, como uma asfixia da vontade. Tem náusea que passa porque é só mudança de direção forçada para uma seara que logo se revela em serendipity – uma daquelas aventuras insuspeitas de descoberta e realinhamento interno onde seguimos um animal em uma floresta.
Mas tem náusea que é constante e se aprofunda à medida em que o imperativo, que a ordem vinda lá de fora, se torna constante e impessoal. A ordem não se importa com você, ela exige ser seguida. Você é só um objeto, número, instrumento, vai ser tocado como gado, dançar conforme a música. Essa partitura lá de fora esfrega na nossa cara uma realidade que é como uma avalanche: o maestro é o outro.
Nesse ponto, meu pensamento preocupado com a asfixia da flor do Coringa – esse homem de terno risca de giz que se aproxima sorrindo e nos mata de cosquinhas – começou a querer gritar, a querer cantar. Me peguei pensando em cânticos tribais. Cantar é evocar, portar a voz para chamar uma energia qualquer que precisa entrar no mundo para mudar a vibração no mundo. Ou pelo menos para fazer o mundo notar que outras vibrações são possíveis, necessárias. Poetas, aedos, músicos captam intuitivamente os anseios físicos, reais, imediatos da realidade ao seu redor.
Martinho da Vila, no documentário “Palavra (en)cantada” diz que sente um incômodo com a música contemporânea do morro, que sente falta da poesia musicada que vinha do morro nas décadas de 1940 até 1960. O poeta traduz em música aquilo que vê. Quando a música não agrada, talvez o que se veja não seja mesmo tão agradável. O insuportável transborda em som também, como qualquer sentimento.
A intuição sensorial congrega canto, vibra e integra narrativa em melodia, música. A palavra música vem de mousa, “musa”, divindade que faz a ponte entre o humano e a potência criadora do divino. Mousikós é aquilo que se refere às musas, o fazer artístico delas. Mousiké é a técnica, a relação exercida entre essas divindades e, finalmente mousiká (música) é a vibração dos corpos (cordas de aço, nílon e entranhas) que se espalha em onda pelo meio. Qual música não pode ser tocada, nesses antros contemporâneos da euforia?
“Engole o choro, Renato!” martelava pesadamente atrás do muro onde a gente finge que esquece as porradas insuportáveis de ontem.
Tudo isso me veio à mente porque enquanto pensava, no metrô entre a Afonso Pena e o Largo do Machado, numa tarde de quarta feira, minha mente repetia um canto tribal específico. Um canto de uma tribo que provavelmente você conhece e, conhecendo, não será capaz de ler sem entoar. Minha mente sozinha e em looping, cantava:
“Hoje eu desafio o mundo
sem sair da minha casa
hoje eu sou um homem
mais sincero e mais justo comigo
pode os homem vir,
que não vou me abalar
os cães farejam medo
logo não vão me encontrar
Não se trata de coragem
mas meus olhos estão distantes
me camuflam na paisagem dando
tempo tempo tempo
pra cantar
me deixa, que hoje eu tô de bobeira
me deixe, me deixa, me deixa, que hoje eu tô de bobeira” – O Rappa
A masculinidade ganha uma roupagem extremamente tóxica na cultura neoliberal contemporânea. Ela se preenche do “hiper”. Tudo o que é natural do humano se torna hiper. Hiper é um prefixo grego que quer dizer “além do”, “excessivo”, “exagerado” ou “desnecessário”. Isso é perfeitamente compreensível para quem vive nessa tribo de onde advém esse canto ritual acima, a sociedade do supérfluo. A espécie humana compete, caça, combate, tanto quanto colabora, congrega e apazigua. Isso tudo é natural do humano e fará parte da espécie para além de todos os nossos delírios de perversidade ou santidade ao longo do tempo.
Só que na nossa sociedade temos duas questões a considerar: machismo estrutural e hiperestimulação necessária para dar conta da expectativa de lucro do nosso deus contemporâneo, o Todo-Poderoso Deus-Mercado-Financeiro.
Bem, se queremos ser sinceros aqui podemos dizer que esse deus não é nada novo, é só a roupa nova da boa e velha ganância. Alguns psicólogos chamariam de complexo de poder. Eu, como antropólogo que ama mitologia chamo de sombra de Zeus. Mas nomes são só silhuetas pra delinear a forma.
Demorei para entender como aquela música não saía da minha cabeça enquanto minha mente vasculhava Macunaíma, malandragem, Lévi-Strauss, Baudrillard, Foucault (O Coringa, sempre) e um monte de nomes que fazem todo o sentido para quem já foi lá saber do que se trata, mas podem parecer sopa de letrinhas aqui. A música não. A comunicação da música é universal. Ela toca no sagrado e reverbera a intenção intuitiva dentro de nós.
“Hoje eu desafio o mundo
sem sair da minha casa”
O imperativo da masculinidade ocidental, baseado num imaginário paleolítico de caça, combate e competitividade, abafa o som do que é atribuído ao feminino, as ideias de colaboração, nutrição, cuidado, afetuosidade. Junto disso temos a hiperestimulação contemporânea, nos deixando numa nova era dos extremos – parafraseando Hobbsbawn e dilatando no tempo o seu recorte.
O problema não é competição, competir é natural e eventualmente necessário. O problema é a hipercompetição, a disseminação intencional e perversa da ideia de uma luta de todos contra todos onde “O homem é o lobo do homem”. O problema não é o consumo. Todos precisamos consumir para viver. O problema é o hiperconsumo, o consumo do supérfluo, do fugidio, do inútil.
Desafiar o mundo sem sair de casa talvez tenha a ver com essa ideia de desafiar sem ir à caça, sem entrar no jogo, sem participar. Daí me veio a ideia do Macunaíma, da preguiça, do permitir-se o cansaço.
“Hoje eu sou um homem mais
sincero e mais justo comigo”
Essas estrofes me lembraram diretamente a relação entre a deusa Héstia, uma deusa grega do fogo e da idéia de centralidade, ligada simbolicamente à resposta das perguntas “quem eu sou?” e “onde estou?”. Perguntas proibidas, perguntas-tabu no nosso mundo em que eu devo me importar mais com as relações sexuais de um jogador de futebol que nunca vi ou verei, com a roupa de uma cantora com quem nunca falei, do que com as minhas urgências. Onde a urgência é ditada de fora para dentro, por uma instância de poder externa, é proibido ser sincero e justo consigo mesmo.
Minha intuição, cantando na minha mente, não poderia estar mais certa.
“Os cães farejam medo
logo não vão me encontrar”
Medo. Medo é o campo simbólico, semântico e afetivo mais comum no nosso cotidiano. As palavras mais repetidas pelo noticiário estão relacionadas ao medo. Crise, medo, pânico, incerteza, insegurança, caos, suspeito, suposto, provável, indício. O medo é o afeto mais constelado porque o medo é a estratégia de venda mais simples que há. Tenha medo do SUS, consuma o plano privado de saúde que paga o anúncio no jornal. Tenha medo de não lucrar o suficiente com a poupança, aplique na bolsa onde você pode perder tudo. O medo é a mola mestra do Mercado.
“não se trata de coragem
mas meus olhos estão distantes”
Coragem envolve aí um enfrentamento direto. Esse enfrentamento implicaria em sair de casa e entrar no jogo. Ter o jogo como referencial negativo, mas como referencial principal. Quando penso numa não-bola a única coisa que se fixa na minha mente é uma bola. Não-mosquito, mosquito.
Quando meus olhos estão distantes, eles não estão no imediato, no estímulo presente, na tela do celular, no banner, no anúncio.
“me camuflam na paisagem dando
tempo tempo tempo
pra cantar”
Se camuflar, se tornar invisível, apagar seus rastros na sociedade virtual de hoje é talvez a coisa mais importante que podemos aprender, o desejo maior de todas as pessoas exaustas diante da hiperestimulação do Mercado que sabe o que você quer e te oferece o tempo todo aquilo que você pesquisou, falou, conheceu ou clicou.
Camuflagem digital hoje em dia é sinônimo de paz, integridade e fornece um dos ativos mais poderosos do nosso cotidiano: Tempo.
A repetição é um recurso de ênfase. A repetição tripla dá a dimensão da profundidade do desejo pelo que é repetido, o santo graal contemporâneo: “tempo tempo tempo”. Os dois ativos mais importantes da nossa sociedade não tem a ver com dinheiro. São tempo e crédito. E não, “crédito” não é dinheiro. A raiz da palavra “crédito” vem do latim – credere, acreditar. Você paga, você dá o seu dinheiro, porque você acredita que ele vai voltar, ou que ele vai te fornecer algum alívio para um tormento presente.
Por isso:
“Me deixa que hoje eu tô de bobeira”
Umberto Eco fez um romance e um ensaio maravilhosos que me vieram à mente com essa frase acima: “O Nome da Rosa”, onde ele fala sobre o perigo do riso como transgressor da norma, como divergência contagiante, e “Apocalípticos e Integrados”, onde ele fala sobre como e quando as pessoas se congregam em grupos que acham que devem transformar a realidade, os “Apocalípticos”, e aqueles que desejam de conformar a ela, “integrados”.
Estar “de bobeira” é, também, não estar interessado em participar da norma posta, da regra estabelecida, do jogo implícito do cotidiano.
Mas acima de tudo é preciso de tempo para algo específico, “pra cantar”.
A canção, música, tem harmonia e melodia. Harmonia, musicalmente – e isso eu tive que ir procurar num dicionário de música porque não é a minha praia – é a combinação de sons simultâneos. Uma combinação que se dá no tempo e traz um sentimento de integridade, afeta nosso espírito, “faz sentido” sonoro e sensorial quer você seja um Lenine ou eu que não entendo nada de música.
Pensando sobre a Harmonia me vieram duas coisas à mente. Um dia em que eu estava na Lagoa com uma namoradinha e ela, com semblante distante e triste me perguntou “você acredita em felicidade?”. Eu sei que muita coisa do que eu leio e estudo me influencia fortemente por dentro, mas nesse momento eu senti lindamente minhas leituras budistas e taoístas aflorando pelos meus dedos. Dei um beliscão na coxa dela (sim, tínhamos essa intimidade!).
“Aí!” você me beliscou!
“Doeu?”
“Claro que doeu, você é maluco?” – e a mão esfregava a coxa com ela me olhando com raiva.
“Você acredita em dor?”
“Claro que eu acredito, idiota!”
“Ainda está doendo?”
“Tá passando…”
“Felicidade é isso aí. Dói e passa.”
Cada som é um feixe de onda, um conjunto de frequências que ouvimos como se fosse um som só, uma “acústica”. Cultura é um conjunto de cultivos e cultos – no sentido religioso do tempo “culto” – que a gente vai cultivando até que a coisa cresce e, quando vemos, estamos cultuando aquele cadáver de regras feitas pelo seu bisavô. Harmonia é uma sequência possível.
Mas Harmonia é também uma deusa. A filha de Afrodite – deusa da sedução e do sexo – com Ares – deus da guerra e da violência. Harmonia é um algo que acontece entre o relaxar e o tensionar, entre o agredir e o agradar. Harmonia é o conceito mais taoísta da mitologia grega.
É o que acontece no tai-chi, aquele símbolo que os ocidentais chamam pelo nome das partes: yin e yang. O nome do símbolo é tai-chi. E tai-chi significa “culminação suprema”, o equilíbrio entre luz e trevas, certo e errado, bom e mau, feminino e masculino, alto e baixo etc, harmonia.
Para dar conta do desejo de lucro do deus-Mercado que, no dia do meu aniversário, nesse ano de 2019, chegou à conta matemática de que precisa de 1,7 planetas Terra para se sustentar, precisamos de um hiperconsumo. Os marqueteiros, atrás de satisfazer essa sanha para não perderem seus empregos, movimentaram as nossas mídias contemporâneas até o ponto de hipertelia.
Hiper, como já falamos, significa “além de”, “excessivo”, “desnecessário”. “Telia” vem de telos, a palavra grega para “finalidade”, “motivo”, “sentido”. Nossos sistemas de comunicação estão aí nesse ponto de hipertelia. A quantidade de estímulos com finalidades difusas é tão grande que causa um “marear” da mente, uma náusea constante gerada pelo fascínio no potencial interativo da comunicação integrada. Nesse caminho perdemos o sentido da comunicação e naufragamos no mar de hiperestímulos.
Por isso hoje impera a função fática. Aquela que diz “Ei! Ôu!” apenas para chamar a atenção. Por isso também o império do que os millenials chamam de “hype” – aquela empolgação inicial com alguma novidade. O jornal está a serviço do espetáculo, não da informação. A informação real precisa ser caçada.
A hiperestimulação gera uma espécie de apatia generalizada, uma anestesia geral que é responsável pelo aumento generalizado das expectativas difusas de “felicidade” que, por serem difusas e hiperbólicas, não podem ser satisfeitas nunca, gerando a maré de solitários depressivos saltando de experiências de consumo e amorosas, fazendo do suicídio algo tão endêmico que precisamos de um dozeavo do ano lembrando às pessoas de que elas não estão sozinhas, de que todos temos boletos, dores, expectativas e dissabores e que a vida está aí para trazer dor e prazer, de que a harmonia é algo que se encontra no contraste entre eles, na dinâmica entre eles. Entre eles, não em apenas um deles.
Mas se há algo de preciso na cultura do impreciso é que o mercado precisa urgentemente de que você precise. E precise do difuso, para que consuma ávido e ininterrupto.
Num hipermundo tão constante e tão estimulado com tanta felicidade lá fora, como você ousa não estar feliz? Como você ousa não ser “pleno”? Afinal, você já entrou no instagram hoje? Todos acordaram lindos, bem arrumados, sorridentes, tomando seus cafés especiais, organizados, bem alimentados, jantando em restaurantes caros, viajando para lugares exóticos, comemorando suas conquistas, dançando em atmosferas de clipe, treinando seus corpos perfeitos, cantando, vibrando, amando, numa espiral hiperbólica de euforia.
Ah, e por quê “cócegas”? Porque desde criança sabemos muito bem que cócegas são o mais refinado refúgio da perversidade na tortura.
RENATO KRESS é antropólogo e cientista político
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