Por Camila Ferrareze

Antecipadamente, peço desculpas pela generalização – que é sempre perigosa e quase sempre burra. Mas eu tenho asco de generais. Eu sinto pruridos generalizados pelo corpo quando o assunto é milico. Eu desdenho das organizações militares, as reputo patéticas desde seus princípios estruturais até a indumentária cafona.
Sei que serei julgada por qualquer analista de bagé[1] e eles terão toda a razão: é projeção e negação. Sei e confesso – mas esse problema resolvo no divã.
Conheço um pouco as instituições militares porque, como Defensora Pública, atuei em uma auditoria militar gaúcha[2], que é a instância judicial adequada para processar e julgar militares acusados de praticar crimes militares próprios e impróprios. Ou seja, eu já advoguei a causa dos zé-ruelas que viravam réus perante a famigerada justiça militar.
Naquela seara circense, vigem os princípios da hierarquia e da obediência, ou seja, manda quem pode e obedece quem tem juízo (não estou falando de juízo crítico, fique claro). Naquelas bandas, é crime previsto em lei dormir em serviço – mas só se o milico agir com dolo. Mais ou menos assim: se colocar o pijama dos minions, a meia de lã que ganhou da vó no natal e a toquinha-ninja-de-pompom está configurado o crime porque, afinal, o cristão agiu querendo dormir ou assumiu o risco de dormir. Agora, se o miserento apenas dormir, ou seja, sucumbir a uma necessidade animal de fechar os olhos e se entregar a orfeu…buenas, aí é fato atípico.
Para julgar esse tipo de crime, instaura-se uma sessão solene. Forma-se uma junta militar (composta por um juiz togado e mais três milicos que ostentem patentes superiores àquela do réu). Tem promotor de justiça acusando e tentando demonstrar, com afinco, que o “do coturno” reclinou o banco da viatura com a clara intenção de babar na farda ou, pelo menos, assumiu o risco do resultado sono. Tem defensor público que tenta dar nó em pingo d’água argumentado que, afinal, não se trata de uma conduta condenável porque por baixo da farda, há carne, osso, suor, lágrimas… e sono. Depois tem equilibristas, malabaristas, palhaços…ops, para esse tipo de circo tem que pagar ingresso.
Do mesmo modo, como Defensora Pública com atuação na justiça criminal estadual, escutei as versões-conto-da-carochinha do tipo: “tentamos conter o elemento, que resistiu à prisão; então foi necessário fazer uso moderado da força para prender o meliante”. Também tem aquela clássica justificativa para invadir a casa do pobre que mora na periferia sem autorização judicial: “havia movimentação atípica defronte da residência, o que indicava se tratar de um local utilizado como ponto de venda de entorpecente”. Ou, ainda, a bem ensaiada razão para prender preto aos baldes: “o elemento estava em atitude suspeita e fugou quando viu a viatura”.
Ou seja, o arbítrio tem mão dupla: atinge os próprios milicos – normalmente o cabo raso, é verdade – e as vítimas desses mesmos milicos.
Contextualizado o meu lugar de fala, convido a todos a assistir ao vídeo em que um jornalista pergunta ao porta-voz da presidência da república qual crime Glenn Greenwald teria cometido. Prestem atenção ao tom cândido do rapaz que pergunta ao generaleco qual o crime praticado pelo jornalista Glenn Greenwald ao divulgar os diálogos obtidos por uma fonte, cuja identidade foi por ele mantida no anonimato. Sem qualquer subterfúgio de retórica, sem nenhum indício de ironia, isento de qualquer manobra linguística, o jovem jornalista elaborou uma pergunta a partir da declaração dada pelo presidente da república de que Glenn poderia “pegar uma cana aqui no Brasil”. A primeira reação do condecorado faz crer que confundiu a ação de invadir indevidamente o celular de alguém com o fato um jornalista divulgar o conteúdo obtido a partir de tal invasão – que é uma prerrogativa do profissional e um dos esteios da democracia. Assim, o rapaz insiste, explicando que se refere à conduta de Glenn, ou seja, qual crime teria ele cometido. A resposta é militaresca, impositiva: “não há nenhuma dúvida que é crime”. E cita o chefe dizendo que, na visão do presidente, “é crime e ponto final”.
O jornalista insiste na pergunta e quando, enfim, o porta-voz se viu enredado no próprio chicote; quando faltaram argumentos para sustentar o insustentável; quando a inteligência de homem-médio-cidadão-de-bem foi insuficiente, eis que apelou para um recurso de milico-raiz: a intimidação pelo olhar. Aquele olhar projetado do plano superior, que pretende penetrar os poros do subordinado a ponto de paralisar seus ossos, inibir seus músculos e anestesiar seu raciocínio. O mesmo olhar que os pais do patriarcado do século passado lançavam sobre suas crianças para que elas o obedecessem sem fazer barulho nem perguntas.
Nesse particular, Rêgo não portou apenas a voz do mandatário da nação, senão seu mais latente desejo: o de nos tornar meros subordinados cumpridores de ordens e de caprichos. Imagina-se chefiando um quartel regido pelos princípios da hierarquia e da obediência, onde o milico-mor manda e os praças obedecem, sem pestanejar.
Ocupando esse espaço imaginário, sente-se autorizado a falar qualquer coisa, ainda que tal coisa tenha conexão direta com o intestino. Desde esse posto tudo lhe é permitido de imediato: alterar o conceito de trabalho escravo, declarar que não há fome no Brasil, autorizar aos estrangeiros o turismo sexual com nossas mulheres, indicar o filhinho fritador de hambúrguer para embaixada, acabar com a Ancine e com o ICMBio, dar carona para a parentalha no avião da presidência, conceder visto diplomático para a nora-barbie, desdenhar da dor de um filho que perdeu o pai durante a ditadura, aplaudir chacinas…
Não é por outro motivo que despreza a imprensa livre e que tenta demonizar a OAB. É justamente por isso que ataca a classe artística, os intelectuais e a academia. É por isso que faz choramingar e lamentar o presidencialismo de coalisão. Bolsonaro, um esboço sofrível de milico recalcado, tem medo da democracia e de tudo que a representa simplesmente porque, num regime democrático, cara feia não amedronta ninguém. Quando muito indica fome. Ou dor de barriga.
CAMILA FERRAREZE é defensora pública no Rio Grande do Sul e mestre em Direitos Sociais pela UNISC/RS
[1] Vide “O Analista de Bagé”, de Luis Fernando Veríssimo
[2] A deputada estadual Luciana Genro (PSOL/RS) protocolou projeto de lei que extingue a justiça militar no RS, em tramitação na Assembléia Legislativa do RS
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