por Paulo Ferrareze Filho

Todo advogado sabe que o momento de sacar um alvará é um dos melhores. Pra mim, que larguei essa profissão de merda, sempre foi o único momento que prestou. Eis que, mesmo tendo abandonado a gravata, tive que fazer um saque de alvará na CEF de Navegantes. Vai e vem com a balsa etc. Estacionar na cidade cinematográfica. Bateria do celular carregada pra aguentar o iron man em busca da mascada. Aliás, o que as pessoas faziam nas filas antes do celular ? Para sacar os 4 valores do alvará era necessário pegar 3 senhas para 3 lugares distintos. Os 2 primeiros valores eram no setor do FGTS. Esperei e fui atendido logo. O tiozinho me disse que era preciso solicitar a liberação e voltar no banco 10 dias depois para efetivamente pegar o valor. Quando cheguei no outro setor pra pegar o terceiro valor a senha já tinha expirado. Respirei. Lembrei de exercícios de yoga. Pensei: “tenho que tirar isso tuRo tuRo do meu peito” (JÚNIOR, Sandy). Não resolveu. Fiquei puto. Peguei outra senha. Esperei. Esperei. Um
velho tossia uma tosse catarrenta do meu lado. Esperei. Com um alvará não tem jeito. Não se pode delegar. É cliente ou o advogado. A minha antiga cliente já tinha morrido.
Por isso era eu ou eu. Imaginem só que no Brasil a pessoa morre e não consegue pegar a porra do dinheiro que o banco ficou devendo pra ela. Minha vez chegou. A moça que me atendeu estava em desvio de função e disse que era a primeira vez que atendia nas “mesas” e que não tinha a manha do procedimento. Chamou alguém. Minha bateria já tava pifando porque a tela do meu celular tinha se espatifado e coloquei uma nova no camelo. Mas essa tela nova é um buraco negro que suga energia de um modo nunca antes visto. Por isso tive que anotar dados da conta num papel pra não me ferrar na hora de informar pro cara do caixa fazer a TED. Fiz isso enquanto a novata encontrava o cara que sabia o procedimento. Ela voltou e me disse: o cara do procedimento saiu pra almoçar. Pensei “como assim ô filha da puta” … mas disse: “tá, mas SÓ esse cara sabe o procedimento ?” Meu superego funcionando a todo vapor, testando minha paciência. Ela tava tão chateado quanto eu, com a diferença que ela sentia medo e eu ódio. Ela foi então falar com o gerente mor. Ficou lá um bom tempo. Resolvi tomar um café. Era terrível. Sem comer e com aquele café, comecei a arrotar uma azia ácida, terrível, homicida. Ela voltou e disse que dos dois valores remanescentes, apenas um estava, de fato, disponível. Arrotei de nervoso. Acho que ela sentiu pois fez cara de asco misturada com medo e com cara de quem não é paga por desvio de função. Pensei em suicídio. Pensei naquele filme Um dia de fúria, mas não tinha nenhuma arma de fogo à disposição. Por isso que a política de armas do Bozo não é funcional. Quando o demônio desperta em nós podemos matar. Ela liberou um dos valores. Na verdade não precisava de três senhas. A mocinha das senhas é que tinha se enganado. Pedi uma declaração que dissesse que o valor que estava no alvará, não estava na conta judicial, pra poder dizer pro juiz que provavelmente leria só em maio a petição. A novata me encaminhou pra um cara que poderia me dar o papel. O cara é daquele estilo que quando caminha não mexe os braços. Inconfiável, portanto. 40 anos e jeito de virgem. Ele demorou 15 minutos pra escrever que o valor que era pra estar lá não estava. Na hora de imprimir, a impressora engasgou. Até aparelhos desistem de gente assim. Peguei a declaração e me mandei dali. Hoje voltei aqui pra resolver o negócio. Balsa de novo. Estacionamento. Lembrei do Mujica falando sobre o tempo de vida que a gente perde pra conseguir dinheiro. Cheguei às 10h em ponto. Filas. Cheiro de morte. Velhas moribundas. Agora é quase meio dia e estou terminando a via crucis. A advocacia é uma das profissões que vai acabar segundo o cara que escreveu o livro Sapiens. Saltem fora enquanto é tempo. A burocracia no Brasil não tem limite. Escuto os caixas comentando sobre qual antidepressivo cada um toma. Realmente não tem como trabalhar num banco sem estar chapado de alguma coisa forte. Eles me entregaram comprovantes. Assinei uns 7 papéis. Não li nenhum. Duas manhãs inteiras de vida. Hoje é um dia feliz. Vou tomar coca no almoço. Foda-se a dieta.
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