ARTIGOS

O inferno das prisões ficou mais quente com o coronavírus

por João Marcos Buch

A humanidade nunca se afastou do abismo, mas neste século ela se encontra mais próxima dele. Governos por todo o globo, com exemplos patentes em nosso país, deturpam as liberdades democráticas e destilam pelas bocas nervosas de seus governantes discursos de ódio, que encontram eco nas ruas e atingem fatalmente parcelas da população.

Na solitude das noites, em isolamento social, vi uma palestra pela web do Professor Rodrigo Murad, sobre a doutrina penal nazista. Saindo do aspecto conceitual e fazendo anotações, logo cheguei, junto com o professor, à constatação de que a história em alguma medida se repete.

A partir da ausência de alteridade, marcada por um estado que fomenta a ideia de hierarquia de raça, numa sociedade estruturalmente racista, olvidamos no Brasil de uma principiologia mínima do direito penal, desqualificamos o outro, o tornamos bode expiatório, expropriamos seus direitos e o colocamos nos guetos das prisões. Tudo para em seguida levá-lo ao extermínio, já que nada mais vale.

Não é de agora que tenho extinguido processos de execução penal pelo óbito. No último ano foram cerca de 30, envolvendo apenados que cumpriam pena recolhidos na prisão e apenados egressos, que já estavam no regime aberto ou no livramento condicional e, portanto, morreram fora dos muros físicos do cárcere. A maioria das mortes foi violenta, não natural, e a absoluta maioria envolvia jovens de 18 a 30 anos de idade.

Isso entra nas estatísticas, nas baixas processuais; a lei tem até uma previsão para o arquivamento de processos em razão do óbito do réu ou apenado. Está lá, no Código Penal, em seu art. 107, inciso I: extingue-se a punibilidade pela morte do agente. É a dessubjetivação por excelência que o sistema de justiça criminal provoca nesses seres humanos, tornados meros números.

Com a pandemia, a desumanidade das prisões também se alastrou, coisa que eu não imaginava que pudesse acontecer, pois tudo já era cruel e caótico no cárcere e o limite da licitude já havia sido ultrapassado há muito.

Pelo fato de ter os direitos e garantias fundamentais como norte e a dignidade da pessoa humana como base na aplicação da lei e da Constituição perante as populações penalizadas e privadas de liberdade, sempre presenciei o ódio a que essas pessoas são submetidas. Agora está mais grave! O objeto das estatísticas de pessoas presas deixou de ser baseado na vida e passou a ser catalogada pelo compasso da morte.

Há um par de semanas, seguindo com rigor as regras sanitárias, conforme recomendado pelo Conselho Nacional de Justiça, fiz mais uma inspeção no complexo prisional, com foco no contexto da Covid-19. Na conversa com detentos – não concebo inspeção sem entrada nos pavilhões, galerias, corredores e entrevista com os presos, tudo sob o respeito dos protocolos da saúde – houve pedido por um apenado, que estava doente na cela. Dias depois soube da sua morte. Por respeito à sua memória e aos familiares, não entrarei em detalhes de procedimentos anteriores e posteriores ao óbito (a informação médica é que não foi em razão do vírus), tampouco adentrarei em dados do processo, por questão ética e porque neste momento a história juridicamente ainda não se encerrou. O fato é que aquele detento era um jovem preocupado com a família e por ela amado e que havia dado provas concretas de que desejava uma vida melhor e mais digna.

Nenhum homem deveria controlar a vida de outro homem, já dizia um dos maiores escritores da história, o russo Leon Tolstoi. Acontece que se o estado nos faz agir de forma a que homens controlem a vida de outros homens, que pelo menos se obrigue àqueles a evitar a morte precoce e violenta destes.

Como juiz da execução penal, ando tanto pelo inferno que já nem sei mais quando estou nele, apenas quando dele saio é que sei que nele estive. Não pode ser assim, esse inferno precisa acabar, cada vida importa!

JOÃO MARCOS BUCH é juiz de direto da vara de execuções penais da Comarca de Joinville/SC e membro da AJD

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