por Renato Kress

Muitas das vezes em que entro num táxi ou uber, a conversa acaba indo para o lugar comum da crise política.
E quando me perguntam sobre minha profissão acabo falando sobre ciência política. É inevitável o pedido depois: diagnóstico. Sempre me dou ao inglório trabalho de explicar que política não é monofatorial, que nem tudo passa por ou é definido por Bolsonaro, Lula, Moro, Globo, Aécio etc. Mas o mais interessante desses papos repetitivos é que eventualmente uma sacada boa assalta nossas sinapses e salta boca afora enquanto se enraíza neurônios adentro.
Foi numa dessas tantas em que a intuição se mostrou bem mais lógica que o raciocínio que me saiu: “a história política do Brasil é o resultado do nosso descaso e da nossa preguiça”. Só depois de saltar foi que pensei.
A preguiça generalizada do brasileiro diante dos assuntos políticos é tão absurda que a frase que mais ouvimos é “falta liderança”. Ou seja: falta alguém em quem possamos despejar covardemente nossas esperanças, nossa autonomia e nossa credibilidade. Um “grande pai” ou “grande mãe” que vá nos livrar do inconveniente trabalho de procurar boas fontes, comparar informações, descobrir como funciona o sistema representativo, um TCU, um STF, o que faz e o que não faz um deputado, uma senadora, um presidente.
Somos uma nação de Macunaímas, submersos no lodaçal dos nossos atrasos, abismados com o tamanho do tsunami das nossas procrastinações. O retrato histórico do descaso e da projeção de responsabilidade. Queremos uma democratura terceirizada, que nos permita ter hoje a catarse de reclamar amanhã de tudo o que abandonamos de qualquer jeito ontem.
Nos anos 1990 perdíamos dinheiro enquanto nosso foco era desviado por novelas e escândalos sobrepostos uns aos outros. Hoje perdemos direitos enquanto nos dispersamos deslegitimando quem nos apoie, competimos com nossos aliados históricos e adiamos nossa maturidade política insistindo em dar crédito a mecanismos falidos como os telejornais. Vivemos da negação da nossa responsabilidade, de um constante atrasar da maturação emocional e intelectual necessária para tomar as rédeas dos processos políticos.
Aí entra a questão dos 5 kg. Na academia de musculação (não é preciso ser genial para entender que o mesmo ocorre na comunidade acadêmica, nas universidades) temos toda sorte de anilhas, com os mais variados pesos: 1, 2, 5, 10, 15, 20 etc. Cada um tem o seu lugar, cada um tem um espaço correto para ser alocado após o uso, que é para não atrapalhar a vida dos outros. Todas as vezes em que entro, os pesos de 5kg, um dos mais leves e fáceis de organizar, estão no chão, entre outras anilhas, espalhadas ou encaixadas em ordens aleatórias umas sobre as outras, atrapalhando e atrasando o tempo de quem vai usar depois. Todas as vezes eu arrumo, sozinho, todos os pesos. Novos dias sempre trazem eles abandonados aleatoriamente em qualquer canto.
Parece que nos tornamos insensíveis ao potencial pedagógico da repetição. Parece que ouvir, ler e ver, diariamente, provas de que não havia crime que justificasse um impeachment, que abundam provas contra Bolsonaro ou contra o velho Aécio, que o critério de julgamento de Gilmar Mendes é seu interesse pessoal e partidário, que a Globo deve milhões em impostos, que salários de servidores viraram isenções negociadas por propinas no balcão de negócios que se tornou o Estado apropriado por interesses de Mercado, parece que tudo isso se tornou um grande “e daí?” um amontoado de locais comuns, banalizados e principalmente naturalizados. Que não podemos fazer nada, por que nos “faltam lideranças”. Como se depois de 1000 km pedalados ainda precisássemos de rodinhas nas nossas bicicletas, depois de mil passos dados, ainda precisássemos de um andador ou da mão segura de papai-mamãe.
Não sei quanto a vocês. Eu continuo explicando a taxistas e motoristas de uber que política não é monofatorial, que todo mundo tem interesses e que quem se organiza, se agrega e se mobiliza tem mais chance de alcançar os seus. Eu continuo guardando os pesos de 5kg.
RENATO KRESS é cientista político e antropólogo
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