por César Augusto Danelli Jr.

Sem meias palavras, recebia semanalmente a trinca piedade. Telefonemas extensos, cartas de aviso e torpedos balísticos recebidos via celular. A pressão da inadimplência sentava em sua cadeira como a lua cheia estática ilumina os ladrões da imperfeição. A realidade edificada pela legislação do interesse. Os cofres abrem-se como antigos baús enterrados nas areias do Caribe. Piradas sociais engravatados ao suor dos inocentes. Sistemas contabilizam devedores e apontam suas miras. Perseguições executadas sem violência. Empurrões morais e fala mansa ao pé do ouvido.
– Você trabalha?
Olhos apontados para o relógio. Fixação revestida de interesse e perturbação psicológica. A ostentação do bancário exposta como artigo raro na sala de vidro. Cabelo bem aparado e penteado. Camisa abotoada em bordados franceses. Barrigas cheias de pretensão acumulando a gordura do futuro. Correntes e relógios sobressaem-se na infantaria do capital. Toma no café da manhã suco de laranja acompanhado de pão com mel. Sua saúde desconforta. Um largo sorriso de tubarão enfastiado. Sou o peixinho que almoça em seus dentes. Percebo o olhar lateral característico do predador dos mares. Mar de gente. Boa comida a vista (ele pensa). Estou sentado na sua frente como uma isca besta e impotente. Enfrentei noites mal dormidas e uma longa fila de espera. Desarmado, procuro meu arpão nos argumentos.
– Escute meu amigo, trabalhas?
– Sim, mas estou de férias!
– Visualize a tela do computador. Nessa planilha virtual constam as movimentações de sua conta.
– Eu não faço uso há meses!
– Pois bem meu caro! Sem transações, sem saques – nenhuma movimentação. Um espaço de vida nulo a perambular.
– Então o que faço?
– Conte os meses, veja: juros de 8% ao mês, passando na seqüência para 11%. Como passou trinta reais do seu limite que era duzentos e setenta – hoje o senhor deve exatos quatrocentos reais. Uma pena!
O mar suga-me ferozmente para seus intestinos, enquanto cardumes cheios de presas calculam minhas cifras. Sou devorado em segundos. O ar-condicionado seca o suor angustiante do trabalhador sem renda.
– Sabemos que tens uma segunda conta. Pelo que vislumbro, há cinqüenta reais. Que achas de oito parcelas de cinquenta, perfazendo o total da dívida. Um ótimo acordo.
– Vejamos: se discutirmos filosoficamente à luz da moral inaudita, perceba o defloramento relutante em me deixar escapar. Acorrenta-me como um alvo sem preparo. Desprotegido no corredor da morte. Não posso pagar uma dívida ludibriada por interesses escusos. Apenas escrevo e o tempo é meu patrão. Meu cérebro acaba sendo o supervisor natural. Não posso arcar com esta proposta. Não deitarás a cabeça no travesseiro contabilizando mais uma vítima. Esse valor realmente não confere!
O bancário de pronto rebate.
– Um agiota cobra juros de 15%, fora as ameaças, dedos cortados e bocas de formigueiro. Ainda há os leões de chácara postados frente à residência dos desgraçados. Olhos negros que seguem débitos que respiram. O banco jamais faz isso, tratamos nossos clientes com idoneidade e paixão. Um zelo cristão que estende sua capa e espalha seu perdão como a água da chuva lavando bueiros sujos das grandes metrópoles. Por isso, sejamos francos, são prestações pequenas. Insinuam-se num convite ao sono dos justos.
– Eu lhe imploro! Refuto tua fala em nome da escassez de alternativas. Não posso aceitar a agiotagem como realidade de opção. Sensatos não seremos se colocarmos nossa vida em risco por dinheiro. Não existe a mera possibilidade. O que nos trás novamente aqui. Então o que me resta? Claro que apenas o banco – instituição credenciada do absurdo, tanto quanto a agiotagem, porém com a burocracia e ameaças morais transcritas no papel. Convites de humilhação para gabinetes dos fóruns – magistrados esperando. O grande circo começa. Conhece Luis Alberto Warat?
– É algum Tio Patinhas?
– Não, é o Rei Momo do Direito. Teu algoz lobo egoísta! A cobrança que me acusas é de um surrealismo escatológico. Inserida na realidade por uma lei de colarinho branco manchada de sangue. Um castelo de tijolos. Cada lajota, um interesse responde por si. Juros de 11% para 15% são só quatro passos. Teu rosto não tem expressão! Conseguiste moldar a máscara que o mundo pede. Tenho duzentos reais na carteira, aceita ó nobre coração piedoso?
– Deixa-me ver. Sim, à vista e conta encerrada!
– Tudo bem, aqui estão. Uma doação de bom grado.
– Muito obrigado. Creio que em torno de três dias seu nome será removido do SPC e Serasa. Tenha um bom dia!
Ao levantar, notei sua repulsa em enxergar um pobre discursando por justiça divina sobre poucas notas de papel. Justiça terrena! Tenham dó dos abutres mascarados. Grandes tubarões brancos famintos por carne vermelha. Os estacionamentos preenchidos por seus carros quase quitados. Carnes suculentas os esperam em casa. Ora no forno, ora na cama.
Ainda em sua sala, escuto Mefistófeles abanar a cauda pontiaguda e perguntar em meio à fumaça:
– Caso quiseres, volte e abrimos outra conta. Quem sabe com um limite maior!
Suas palavras são como um laxante de ervas fervidas. Ao pé da porta, libero o enxofre nauseante que alimenta um demônio transvertido de ser. Apenas de ser. Enquanto isso, volto para a rua girando a porta blindada, deixando para trás espécies protegidas do calor do asfalto. Maquiagem branca e nariz vermelho – somos todos palhaços adestrados!
CÉSAR AUGUSTO DANELLI JR. é professor universitário e doutorando em educação nas ciências pela UNIJUÍ
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