por Mariana Anconi

Semana passada enquanto ouvia uma analisante na sessão online, fomos surpreendidas por gritos e pelo barulho de panelas que vinham das janelas de sua rua. A cidade entrou e atravessou a sessão misturando a voz da paciente com a de tantos outros.
Quando falamos a um analista, estamos falando de quem? A experiência analítica é imaginarizada por alguns como uma proposta individualista, já que se fala sobre si. Alguns pensam como se fosse um eterno movimento ao encontro do próprio umbigo. Esquecem que a fala é como uma janela que faz ponte entre o eu e outro, o individual e o coletivo.
Assim, quando alguém fala de si, existe um para-além desse Eu que fala, que só é possível escutar através de um outro que faça função de objeto causa de desejo. Localizar-se além do próprio Eu nos faz lembrar que a nossa voz é também a voz de outros.
Com o isolamento, entendemos cada vez mais que o distanciamento é fisico e não exatamente social. As redes sociais renovam sua potência para os laços, tonando-se necessárias para a manutenção da vida. As lives atestam publicamente os que estão vivos, enquanto as notícias nos deixam com a sensação de estarmos em uma partida de xadrez com a morte (1).
Os caminhos e estratégias adotados para atravessar esse momento difícil são muitos. “É tempo de olhar pra dentro. Focar em você e no seu bem-estar”. Frases como essa são reforçadas diariamente. Seguem uma lógica de que é o momento de buscar força interior, no seu corpo, na sua bolha. Ao mesmo tempo, muitos ainda apostam na ideia de que “estamos todos no mesmo barco”, sofrendo igual. Mas será assim mesmo?
O jornal The New York Times (2) publicou que a contaminação pelo vírus tem provocado mais mortes em negros e em latinos na cidade de Nova York. O que revela a ingenuidade daqueles que acreditam que todos estão no mesmo barco, sofrendo em igual medida em relação ao vírus. Não estamos no mesmo barco, nem nas mesmas janelas dos prédios.
Como buracos no concreto, as janelas oferecem uma saída possível como as medianeiras. Enquanto os andares de cima representados pelas “varandas gourmet” seguem romantizando a quarentena, os que ocupam os andares de baixo seguem morrendo. Não resisti a uma associação à estrutura vertical apresentada no filme O poço (2019) do diretor Galder Gaztelu-Urrutia.
A lógica do poço está pautada em um repetição de imprevisibilidade em relação ao andar que cada um ocupará no mês seguinte. Todos os dias a plataforma desce os 333 andares com um banquete que se reduz aos restos até o último andar. O banquete, que remete a um ato coletivo, está para além do saciar a fome. Nos convoca também à pergunta: Você tem fome de quê?
A fome e a miséria humanas estão retratadas nas cenas ao melhor estilo gore. E muitos, claro, fizeram uma leitura do filme a partir da luta de classes. Óbvio!
Mas o que será que podemos extrair para além do óbvio num filme que traz tantas referências e simbologias como: religião, na lógica do “tomai, comei; isto é o meu corpo.”; capitalismo, através da mercadoria (faca que se afia sozinha) como objeto de consumo e desejo; o livro como objeto de libertação, uma vez que a loucura de Dom Quixote está nas entrelinhas da narrativa; disparidades sociais, como quando um chef de cozinha surta com o fio de cabelo na panacota, enquanto outros precisam comer os restos deixados pelos andares de cima, etc.
Enquanto escrevo sobre a prisão do Poço, lembro de um texto do Lacan (3) que inicia com um sofisma dos três prisioneiros. Qual a lógica que os liberta da prisão? Tomo emprestado do texto de Lacan a “noção lógica da coletividade”, que pode nos ajudar a pensar o poço e a atualidade.
Mesmo com todos seus (d)efeitos, o filme instiga o espectador a ir um pouco mais-além do “olhar para dentro”, o mais-além do eu ou do próprio umbigo. Constatamos isso quando em determinado momento é questionado se seria possível uma “solidariedade voluntária”.
Nesta perspectiva, há uma expectativa em relação ao bom-senso dos outros por comerem apenas o essencial, garantindo que a comida chegue até o fundo do poço. No entanto, a teoria de uma solidariedade voluntária não se sustenta no filme. É preciso um ato para que a mudança opere. Falando em solidariedade, no contexto atual fica inevitável não pensar no discurso de que “devemos olhar o lado bom do vírus”. Essa é a miséria humana. Apontar o lado bom em meio a tantas mortes e sofrimento é incompatível com o ato de se solidarizar com a dor do outro.
No entanto, há um momento de virada no filme: quando Goreng e Baharat decidem descer juntos até o fundo do poço. Um ato de coragem que, como eles dizem, “só um louco faria!”. Esse ato é o que inaugura um tempo caracterizado como uma travessia.
Há uma condição relativa a presença do outro que possibilita sustentar o ato. É como ilustra Lacan em seu texto em que um prisioneiros só pode se libertar a partir da presença dos outros dois. Há uma dimensão coletiva que contradiz a ideia de que a liberdade esta atrelada a uma corrida individual, ou seja, aquela mesma do “olhe para dentro” ou “busque uma saída em seu interior”. A saída pode estar dentro e fora de nós.
A cena em que Goreng e Baharat vacilam quanto a possibilidade de saciar a fome da criança com a panacota, logo se antecipa como uma certeza a partir da presença do olhar da criança. A criança devora a panacota e está livre para subir os andares.
A lógica da liberdade ou da busca por uma verdade no filme está entre um problema individual e um problema coletivo. Como disse Dom Quixote: “a liberdade, Sancho, não é um pedaço de pão.” O que dessa lógica nos remete a direção que líderes políticos estão tomando com relação a pandemia?
Por vezes parece estarmos no tempo de travessia, com recuos e poucos avanços, sem uma luz no fim do poço. O que fica claro é que na travessia do momento atual não há descanso, “o meu repouso é a batalha”, como diz Dom Quixote. As ações ficam como aposta para as próximas gerações, já que essa geração ainda está preocupada em saciar-se com o banquete.
MARIANA ANCONI é psicóloga, psicanalista e mestre pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP)
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(1) Referência a cena do filme O sétimo selo (1957) de Ingrid Bergman
(2) https://www.nytimes.com/2020/04/08/nyregion/coronavirus-race-deaths.html
(2) Lacan, J. (1998a). “O tempo lógico e a asserção da certeza antecipada: um novo sofisma”(1945). In: Escritos. Rio de Janeiro: Ed. Zahar.
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