por Eduardo Newton

O que é processo penal fofinho? E por qual razão é necessário se insurgir contra ele?
Este texto visa a responder esses questionamentos. Na verdade, não se trata de um fenômeno novo ou próprio de uma localidade específica, quiçá o ineditismo, caso exista, seria unicamente na forma de denominá-lo. Aliás, essa forma heterodoxa de nominar algo se coaduna com a conclusão de que o autor “pensa fora da casinha”, como tantas vezes já ouvi em sala de aula e, principalmente, por pessoas queridas.
Antes mesmo de apresentar esse acontecimento é importante, mesmo que de maneira sucinta, delinear o estado das artes do processo penal brasileiro. A dificuldade na obtenção de uma autonomia não é uma realidade única no Brasil, sendo certo que Aury Lopes indica que no cenário italiano, no pós 2ª Guerra Mundial, Carnelutti já trazia esse dado:
“Era uma vez três irmãs, que tinham em comum, pelo menos, um dos progenitores, chamavam-se a ciência do Direito Penal, a ciência do Processo Penal e a ciência do Processo Civil. E ocorreu que a segunda, em comparação com as demais, que eram belas e prósperas, teve uma infância e uma adolescência desleixada, abandonada. Durante muito tempo, dividiu com a primeira o mesmo quarto. A terceira, bela e sedutora, ganhou o mundo e despertou todas as atenções.
Assim, começa CARNELUTTI, que com sua genialidade escreveu em 1946 um breve, mas brilhante artigo (infelizmente pouco lido no Brasil), intitulado ‘Cenerentola’ (a Cinderela, da conhecida fábula infantil).
O processo penal segue sendo a irmã preterida, que sempre teve de se contentar com as sobras das outras duas. Durante muito tempo, foi visto como um apêndice do Direito Penal. Evolui um pouco rumo à autonomia, é verdade, mas continua sendo preterido. Basta ver que não se tem notícia, na história acadêmica, de que o processo penal tivesse sido ministrado ao longo de dois anos, como costumeiramente o é o Direito Penal. Se compararmos com o processo civil então, a distância é ainda maior.”[i]
A carência de autonomia cientifica do processo penal no Brasil se agrava ainda pela presença de três fatores, que serão explorados nas próximas linhas.
A importância adquirida pela Escola Paulista de Processo não pode ser desprezada, ainda mais porque foi ela que concebeu a chamada teoria geral do processo, que tem como paradigma fundante as estruturas do processo civil. Não é por outra razão que a temática das nulidades no CPP sempre é examinada por uma lógica do máximo aproveitamento do ato ou mesmo da demonstração do prejuízo, desprezando-se, assim, o caráter de garantia das formalidades processuais.
As transformações ocorridas na própria figura estatal devem ser ressaltadas, vez que fruto da lógica neoliberal, a eficiência se torna um grande mantra do chamado Estado Pós-democrático. Os direitos e garantias fundamentais passam a ser concebidos como óbices ao exercício do poder punitivo e, por essa razão, necessitam ser superados em nome dos espetáculos e da preservação/maximização dos lucros:
“Na pós-democracia não existem obstáculos ao exercício do poder: os direitos e as garantias fundamentais também são vistos como mercadorias que alguns consumidores estão autorizados a usar.”[ii]
O terceiro aspecto a ser ressaltado no processo penal brasileiro reside na permanência de uma mentalidade autoritária por parte de parcela significativa da comunidade jurídica. As reações à Lei nº 13964/19 – o chamado Pacote Anticrime – se mostram simbólicas, uma vez que órgãos de classe do Ministério Público e da Magistratura não se opuseram ao aumento do limite máximo de pena a ser cumprida ou mesmo das frações maiores de cumprimento de pena exigidas para a progressão de regime, sendo certo que as impugnações no STF se deram justamente aos dispositivos tidos como mais benéficos a quem sofre a persecução penal.
É no âmbito da linguagem que a questão da mentalidade autoritária se mostra mais visível. Duas situações podem muito bem ilustrar o que se afirma. De um lado, o ato de o juiz conceder ao preso em flagrante a liberdade provisória. A liberdade ambulatória passa a ser vista como uma graça, uma mercê dada pelo Estado-juiz. O que chama atenção é que pela própria redação do artigo 313, inciso I, CPP, se consegue visualizar situação em que a prisão preventiva é proibida, não havendo, portanto, de se pensar em concessão, como dádiva, da liberdade. A segunda situação se verifica na execução penal quando direitos são compreendidos como benefícios, o que, inclusive, gerou a forte crítica de Luís Carlos Valois:
“O principal exemplo desse jogo de linguagens que acarreta violações é a ideia de benefício. Costuma-se chamar o direito do preso de benefício. Ora, ou uma coisa é direito ou é benefício. Presos não têm benefícios, têm direitos. Chamar seus direitos de benefício é passar uma ideia de fraqueza dos seus direitos, como se fosse algo concedido e não algo que os presos podem exigir.”[iii]
Após o enquadramento do atual estágio do processo penal brasileiro, e é preciso afirmar que apesar de todo o esforço acadêmico na superação desse cenário, ainda persiste um modelo balizado pela teoria geral do processo, pela busca da eficiência e pela permanência da mentalidade autoritária, é então o momento de apresentar o que constitui o processo penal fofinho.
O processo penal se insere no sistema de (in)justiça criminal, sendo, portanto, um elemento importante nesse mecanismo de controle formal. Em um país em que não se respeita o caráter excepcional da prisão processual, a “concessão” de liberdades provisórias é objeto de comemoração e se menospreza o fato de que essa dádiva estatal é acompanhada de alguma medida cautelar prevista no artigo 319, Código de Processo Penal. Tem-se, assim, um controle da liberdade ambulatória de alguém, só que mais leve que o aprisionamento; daí, chamá-lo de fofinho.
Cada vez mais rara se mostra a figura da liberdade provisória desprovida de qualquer medida cautelar. Apesar de não se encontrar presa, a pessoa necessita de autorizações para viagens, tem que passar pelo ritual de assinaturas em cartório, dentre outras medidas.
E a insurgência contra o processo penal fofinho não é apenas teórica, no sentido de vulnerar o estado de inocência, mais especificamente quanto à regra de tratamento que dele decorre, pois se pode vislumbrar as aberrações que ele pode causar. Exemplifico. Em uma prisão de uma mulher que tentou ingressar com substância entorpecente no presídio, o seu aprisionamento somente foi revogado após a intervenção do Tribunal de Justiça do estado do Rio de Janeiro, que impôs as seguintes cautelares:
“a) comparecimento periódico em juízo, no prazo e nas condições fixadas pelo juiz, para informar e justificar atividades; b) proibição de frequentar qualquer unidade/estabelecimento prisional, além de bares, boates e festas em locais público, e proibição de ingerir bebida alcoólica; c) proibição de ausentar-se da Comarca quando a permanência seja conveniente ou necessária para a investigação ou instrução.”[iv] (destaquei)
Quem em sã consciência não preferiria a proibição de frequentar bares, boates e festas em locais públicos e não iria ingerir bebida alcoólica como forma de se livrar da prisão? Ainda mais considerando o sistema prisional brasileiro, que foi considerado, pelo STF, como próprio do Estado de Coisas Inconstitucional. Mas, uma pergunta deve ser feita: qual é a relação dessas cautelares com o fato em si? Frise-se: a mulher não tentou ingressar embriagada no sistema prisional!
Diversos outros exemplos poderiam servir para ilustrar esse crescimento do controle penal por meio de medidas cautelares. Fruto de uma lógica do menor dano, a comunidade jurídica admitiu esse fenômeno, mas é justamente contra a naturalização do cerceamento mesmo que parcial da liberdade que se deve contrapor. E que não se ignore o fato de que o descumprimento dessa medida cautelar própria do processo penal fofinho poderá representar o encontro com o cárcere.
Cotidianamente, o processo penal fofinho se apresenta no sistema de (in)justiça criminal. Muito embora possa até representar um dano menor, aos defensores – públicos e privados – se deve cobrar uma postura crítica frente a esse fenômeno, que demonstra o agigantamento do controle penal. Se é verdade que a liberdade é a regra, qualquer restrição, ainda que pareça de menor incidência, deverá ser compreendida de maneira excepcional, o que justifica a postura contrária ao processo penal fofinho.
EDUARDO NEWTON é mestre em direito pela UNESA e Defensor Público no estado do Rio de Janeiro/RJ
[i] LOPES JÚNIOR, Aury. Direto processual penal e sua conformidade constitucional. volume I. 5. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. pp. 33-34.
[ii] CASARA, Rubens. Estado Pós-democrático. Neo-obscurantismo e gestão dos indesejáveis. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2017. p. 41.
[iii] VALOIS, Luís Carlos. Processo de execução penal e o estado de coisas inconstitucional. Belo Horizonte: D´Plácido, 2019. p. 14.
[iv] TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO. Habeas Corpus nº 0082733-57.2019.8.19.0000 julgado, em 28 de janeiro de 2020, pela 7ª Câmara Criminal
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