por Mariana Anconi

A cicatriz de Antonio Banderas dividindo seu peito põe a questão da divisão subjetiva logo de início. Alguns categorizaram o filme como “ficção do eu”. Existe Eu que não seja feito de ficção?
‘Dor e Glória’ se apresenta num ritmo de associacão livre. Fala do eu, de prazer, amores, trabalho, saúde, sonhos, angústia, desejo materno, gozo e morte. Cenas que se intercalam entre passado e presente projetando um futuro incerto do personagem.
Se é ou não uma autoficção/autobiografia esta parece-nos uma questão secundária diante da grandeza da obra e da en-corporação de Banderas que, ao emprestar seu corpo, dá vida a Salvador Mallo, assim como Almodóvar, diretor de cinema.
A narrativa vai propondo paralelos como organismo x corpo; sonho x realidade; amor x ódio; desejo x angústia; dor x glória. Uma lógica que coloca o personagem em um profundo cenário melancólico. Neste tempo, a escrita estava impossibilitada. Não conseguia produzir nenhum texto. Estava preso no looping de recordar é repetir sem, até então, conseguir elaborar o luto da perda de sua mãe.
A mãe é figura que se destaca nos filmes de Almodóvar. Muitas vezes vista como heroína de suas histórias. O que salva Salva-dor? O reencontro com um antigo amor? Despedir-se de sua mãe fazendo as pazes com a ideia de não ter sido um filho perfeito?Suas experiências com a heroína? As vivências de Salvador o colocam em contato com outra realidade, um outro Eu, ou uma outra parte dele; sua divisão.
Estamos às voltas aqui com o Eu de Salavdor Mallo e de Almodóvar. Seriam partes de um mesmo Eu? Partes de uma ficcão construída sobre si?
O eu é uma construção, uma ficção, constituída a partir do outro, o outro da cultura, do laço social, tal como Freud (1914) elabora em “Sobre o Narcisismo: Uma Introdução” e Lacan (1932) em “O Estágio do Espelho como Constituinte do Eu”.
A ideia de que o Eu seja constituído a partir do espelho que produz uma imagem psíquica, nos mostra que essa gestalt escapa à imagem. Pois em determinado momento essa imagem não é capaz de dizer tudo sobre nós, mesmo que ali o Eu possa se encontrar em partes.
Dirigir um filme autobiográfico impõe a questão sobre a escrita de si e a construção de uma subjetividade. Rousseau em “As Confissões” acredita que a autobiografia diz de um reescrever sua história garantindo um lugar de existência perante seu tempo. E o título de Rousseau nos lança ao texto de Freud que fala do aspecto da confissão na escrita autobiográfica, texto escrito para receber o prêmio Goethe.
Porém, é possível perceber neste tipo de narrativa que o autor sabe menos do que pensa saber sobre o enredo de sua história, enroscando-se nas identidades que constrói narcisicamente.
Talvez dirigir um filme sobre sua própria história seja o mais mais perto que alguém possa chegar de seu (ideal de) Eu e mais distante que se possa chegar de seu desejo.
Isso é um convite a pensar que uma análise nao é (auto)biografia, pois existe um endereçamento que não é da ordem do espelho; o analista (a quem se endereça a fala) ocupa o lugar de objeto causa de desejo, ou seja, sua leitura do texto do autor tem como causa apontar para o desejo.
Sobre contar historias a nós mesmos, Joan Didion, escritora e jornalista, tem uma frase importante: “Nós contamos histórias a nós mesmos para poder viver.” Acrescentaria aqui “a nós mesmo e alguns outros…”, pois é preciso sair da frente do espelho para construir outras e diferentes narrativas sobre nós.
No filme, movimentos como o de conseguir falar da mãe a uma amiga ou mesmo escrever um texto sem assinatura (mas com sua letra) produzem efeitos como voltar a escrita, que é um trabalho que exige do corpo, da libido e do desejo.
“El primer deseo” aparece como produto, que aliás, se funda do primeiro desejo de Salvador que o faz arder em febre. Um filme dentro de outro filme. Almodóvar joga com a metonímia que convida o espectador a mergulhar no movimento de sua vida.
Alguns críticos da obra de Almodóvar apontaram erros de continuidade na narrativa. Seria um lapso?
A diferença entre o erro e o lapso está no fato de que o segundo triunfa. Esse lapso de continuidade no filme talvez revele muito mais do que propriamente o conteúdo do enredo. É possível ver o autor ali, no que escapa à cena montada.
Em uma entrevista em Cannes, o diretor afirmou em meio a risadas: “não estou tão mal como o protagonista do filme.” É preciso estar um passo à frente nas histórias que contamos sobre nós.
MARIANA ANCONI é psicóloga, psicanalista e mestre pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP)
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