ARTIGOS

Sobre mulheres e carnaval

por Liliane Pimentel

Às mulheres, querem enquadrar, rotular. Querem dizer como se comportar, o que falar, como falar. Querem as hipersexualizar, dessexualizar. Querem as limitar, as apagar e dizer o tom de voz que podem usar. “Ó abre alas que eu quero passar”, a marchinha interpretada por Chiquinha Gonzaga em 1899 é um hino de uma mulher à frente de seu tempo. Pois abram alas que a mulher quer passar no carnaval, na rua, na organização; com o direito de passar apenas porque lhes é de direito. Que redundância colocar dessa forma. Mas, o óbvio só fica escancarado quando é falado.

Parafraseando Chiquinha Gonzaga, ó abram alas que quero resenhar. O farei inserindo aqui a tão conhecida interpretação de Erasmo Carlos (1981) sobre a Mulher “Dizem que a mulher é o sexo frágil, mas que mentira absurda, eu que faço parte da rotina de uma delas, sei que a força está com ela”. Uma não, Erasmo, mais de uma. Contudo, vou me restringir a duas para não cansar o leitor.

Pois, no carnaval da vida fui compreendendo o poder que é ser Mulher – a parideira, a que sangra, a que chora, a que não se enquadra nos padrões estéticos, a que antes de ser mãe é mulher, a que trabalha com esperança de um reconhecimento para além do estereótipo que limite a beleza ou a inteligência como se fosse possível dividir matematicamente tendo no final, um resultado exato. Não nasce-se mulher, mas torna-se uma, a frase de Simone de Beauvoir lança a questão do que é vir a ser mulher. Nesse campo é útil considerar o modo como cada mulher é tocada pelas referencias femininas que teve ao longo da vida. Tendo como primeiras referencias mulheres do círculo familiar como mãe, avós, tias, amigas e outras mulheres próximas a família de origem que deixaram um legado na constituição subjetiva da qual uma menina vai se apropriando conforme ocorre seu crescimento.

A pergunta, o que é uma mulher, ou a questão proposta por Freud, o que quer uma mulher(?), implica que cada mulher seja considerada na sua singularidade. Pois o que quer uma mulher pode ser diferente do que quer outra. Contudo, as narrativas femininas se encontram, entrelaçam e atravessam-se umas às outras num coro coletivo envolto pelas memórias transgeracionais, histórias vividas e ouvidas.

Para contextualizar a narrativa desse texto descreverei um pouco das referências que tive – Minha avó materna Delvina, de origem italiana, e a paterna, Rosalina (Rute), de origem polonesa, foram agricultoras desde sempre. A nona Rute (em memória), era rude, forte, inflexível, brava, durona. A vida a fez amarga, perdeu um filho por volta dos 3/4 meses de vida para a Meningite, um outro teve paralisia infantil ainda muito pequeno e viveu até os vinte e poucos anos, na cama, invalido, sendo alimentado como um bebe, sendo banhado e vestido por uma mulher que precisou deixar a fragilidade de lado para cuidar da fragilidade da cria. Ele morreu quando eu tinha onze meses. Ela também teve uma menina que segundo lembro, se desenvolveu normalmente até por volta dos seis meses, depois disso, algo não foi bem. Cresci ouvindo que minha tia Ivete, era deficiente, embora nunca soubemos qual era a tal deficiência.

Minha nona Delvina, aos 83 anos, com Alzheimer, não sabe mais quem sou. Lembro das nossas conversas, do riso fácil que se mantem apesar da demência. Lembro do colo sempre disponível, mesmo depois que eu já era adulta. Teve também seus percalços. Apesar do casamento de décadas permeado por dificuldades que ainda perdura e da perda de um bebe natimorto do qual, antes da perda de memória ela falava constantemente com um misto de saudade, amor e dor. Apesar de tudo, um dia, anos atrás, me disse que havia sido muito feliz. A felicidade é um conceito muito subjetivo e particular, conforme a psicologia nos alerta.

Das duas, carrego boas recordações, bem como, grandes referencias de conduta na vida, feminilidade, do que é ser Mulher. Das duas, tenho referencias de doçura, força, ingenuidade, integridade, lealdade, determinação, inflexibilidade, fé, loucura. Sim, loucura, ser mulher é enlouquecer vez ou outra, sair dos trilhos, gritar, rosnar, berrar. E que coisa louca é a Fé que nos faz continuar apostando nessa viagem insana que é viver.

Apesar dos conceitos que tentam enquadrar a loucura como algo pejorativo, que foge a normalidade, aqui abro uma licença poética, visto que a normalidade é compreendida como seguir um padrão, uma normativa. Pois aprendi com as minhas duas referências que um tanto de loucura nos mantem sãs. A nona Rute ordenhava as vacas, fazia queijo. Vendia o leite e o queijo para o laticínio da região de Dois Vizinhos (PR), também negociava as cabeças de gado, fazia cerca, limpava a horta, plantava e colhia na roça, buscava pasto para o gado. Valorizava a vida religiosa assim como a nona Delva. Não ouso dizer que era dona-de-casa, isso seria limita-la a algo que ela transcendia. Quando minha tia Ivete morreu, eu deveria ter entre sete e nove anos de idade, lembro da nona falar que não suportaria perder mais um filho, que morreria junto. Então, minha tia morreu, não sei em que momento a nona morreu junto. Não sei em que momento ela juntou forças para continuar vivendo. Lembro que na mesma época ela disse que seu sonho era ter um rebanho de uma raça especifica de vacas, elas dariam mais leite e renderiam mais dinheiro para negociação tanto do leite quanto das cabeças. Haveria ela enlouquecido pela dor? Estaria ela apostando na vida? De que ordem seria essa loucura?

Ela abria as alas da loucura para continuar vivendo. Ela trocou seu rebanho e seguiu com sua vida. Um pouco antes da sua morte, anos mais tarde, já havia vendido todas as cabeças. Visitei-a no hospital, já muito abatida, fraca, como eu nunca a tinha visto antes. Aquela montanha de força desmoronava, como um carro alegórico despedaçando em plena avenida deixando para trás plumas, penas, adereços de cabeça, uma coroa sem rainha. Os adereços caiam. Seu corpo transformava-se em fragmentos de uma vulnerabilidade que um dia havia sido pura energia. Nos despedimos, ela veio a óbito semanas depois, eu estava no primeiro trimestre de gestação do meu filho mais velho. Após a sua morte, mais do que nunca, eu senti que era parte dela, que ela era parte de mim, que algo de nós duas, havia nos fundido, através do sentimento que nos unia. Éramos duas, eu e ela, então me tornei alguém além daquela que era antes da sua morte. Toda aquela alegoria passava a ser incorporada a minha bagagem carnavalesca que diga-se de passagem, na época eu ainda não sabia que me serviria de inspiração para a passarela da vida. Dela herdei a vontade de gritar. Que ironia, ela que se dizia analfabeta teve uma neta que transformava-se em alguém que precisava escrever para dissipar as emoções.

Quanto a nona Delvina, ah, quanta doçura! Perdeu o pai por volta dos oito anos de idade, como era das mais novas, foi criada pelo irmão mais velho (já falecido), a quem, nos dias de crise, chama pelo nome, condensando na mesma figura o pai/irmão e filho. Quanta delicadeza, carinho, amor, ternura, dedicação ela me transmitiu. Vaidosa, gostava de andar de vestido, com cabelos arrumados, sempre pintados. Se preocupava com as manchas na pele causadas pelo sol. Os olhos verdes brilhavam combinando com o sorriso sempre aberto, farto como paetês em roupa de musa de grande escola. Ela era como um campo florido em dia de sol, exalando charme, caminhando com passos curtos, desfilando sua figura miúda por onde passasse como desfila a musa de uma grade escola carnavalesca exibindo sua formosura. Dela herdei a doçura para falar e a ponderação para dosar tanto a escrita quanto a fala.

Talvez você esteja se perguntando onde toda essa narrativa se encontra. Deixo aberta aqui a possibilidade de interrogação, interpretação, imaginação. Talvez um dos grandes equívocos que cometemos na via seja a necessidade de fechar questão. Ora, há questões que precisam ficar abertas para que possamos elaborar novas questões a partir da anterior. Lembra que escrevi no início do texto que as narrativas se encontram, se entrelaçam?  Já que logo após o carnaval vem o Dia da Mulher, deixo aqui minha homenagem as mulheres que se deixam banhar pela vida assim como o leito de um rio se deixa banhar enquanto a água escorre, como água viva, numa analogia ao livro Àgua Viva de Clarice Lispector, 1973.

Termino com um trecho da música Mulher, interpretada por Elba Ramalho “Pra descrever uma mulher não é do jeito que quiser, primeiro tem que ser sensível… quem vê por fora, não vai ver por dentro o que ela é, é um risco tentar resumir Mulher”.

LILIANE PIMENTEL é psicóloga clínica, psicanalista em formação e especializanda em psicanálise (UNIFEBE/HSC)

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