por Paulo Ferrareze Filho

Lula subindo a rampa do Planalto parecia coisa de cinema. Ao lado dele iam mulheres negras, indígenas, crianças e até um vira-lata adotado. Depois do inferno que foram os anos Bolsonaro, com mais gente preta passando fome, mais indígenas massacrados e mais mulheres nas linhas de tiro e de soco, aquela presença da diversidade no espaço público parecia um alento. Um alento que se estampava ali, se encarnava ali, com todos aqueles corpos subalternizados reconduzindo Lula à Presidência.
A peça de propaganda da estreia, no entanto, foi sendo desmascarada com as indicações de Lula ao STF. Nas três oportunidades que teve, escolheu três homens, priorizando a lealdade como critério subjacente ao texto constitucional. Não é que a Constituição não permita ao presidente entupir o STF de homens brancos. Mas há razões que subjazem à normativa. E, se a lealdade é o critério de Lula, seria o caso de perguntar por que raios Lula não tem relações de lealdade com nenhuma mulher.
Em 134 anos de história, o STF contou com mais de 170 ministros e apenas 3 ministras. Nenhuma negra. A Alta Corte do país nunca teve um rosto que representasse a maioria da população, feita de mulheres e de pessoas negras. Trata-se da manutenção do abismo entre o nosso passado machista e escravocrata e o nosso presente supostamente democrático. Por isso, nosso Judiciário ainda apresenta uma minoria feminina que se reduz ainda mais na medida em que as instâncias de poder judicial aumentam.
Lula já disse que raça e gênero não são critérios para a escolha de ministros. Apesar de parecer neutra e técnica, essa posição é ideológica. A imparcialidade até a página 3 das instituições é o modo mais eficaz de perpetuar o machismo e o racismo. Logo, quando o presidente sustenta que “não vê cor ou gênero” nas indicações, reafirma a supremacia da branquitude, já que, materialmente, quem acaba dispondo do poder, com todo o viés performativo que uma cadeira no STF detém, são, outra vez, homens brancos.
A diversidade racial e de gênero não é perfumaria progressista, mas exigência técnica da democracia. Os protocolos para julgamento em perspectiva de gênero (CNJ, 2023) e de raça (CNJ, 2024) estão aí para confirmar em qual direção a banda democrática toca. Por isso, indicar Zanin, Dino e, agora, Messias é escancarar o teatro político. É colocar em cena essa inquietante contradição entre a propaganda da rampa e a tática política que explicita uma lealdade do tipo “Clube do Bolinha”. O que – convenhamos – sempre pega mal para quem usa a democracia como slogan.
Zanin é a mais estrondosa das obscenidades. Símbolo do compadrio, o mérito solitário dele é ser “amigo do rei”. Das três, é a mais antirrepublicana das indicações. Não apenas por ter sido advogado de Lula, mas, sobretudo, porque ele, diferentemente de Dino ou Messias, sequer cumpre o requisito constitucional de “notório saber jurídico”. Sem aprovação em concurso público, sem percurso acadêmico notável ou carreira institucional prévia, Zanin alcançou o mais alto posto judicial por puro filhotismo. Essa irresponsabilidade tem cobrado seu preço. Até aqui, o homem leal de Lula já votou contra o princípio da insignificância penal, contra a criminalização da LGBTfobia e não conheceu a ação que versava sobre violações dos direitos dos povos Guarani e Kaiowá. Isso sem contar a cara de azia.
Ao se negar a indicar uma mulher negra, Lula sustenta a fantasia da branquitude que vê corpos negros como animalescos e atrasados, em oposição aos brancos, que seriam mais aptos intelectualmente. Érico Andrade lembra, em seu livro Negritude sem Identidade, que nunca esteve presente no projeto moderno europeu a ideia de que pessoas negras aspirassem às atividades do espírito. Lula torna-se, assim, um agente propagador do que Cida Bento chamou de pacto narcísico da branquitude, na medida em que promove a preservação de privilégios sociais e simbólicos de homens brancos. Lula ainda não percebeu que representatividade não é um adorno moral, mas a própria infraestrutura da democracia.
Como disse a ministra Cármen Lúcia, no julgamento que condenou o espantalho do fascismo brasileiro: “Nós, mulheres, ficamos dois mil anos caladas; queremos ter o direito de falar”. A indicação de uma mulher negra ao STF não seria uma cortesia, não seria uma aposta desimplicada, mas uma questão técnica de democracias levadas a sério.
Qualquer coisa diferente disso e a impressão que fica é a de que Lula nos prega peças e governa para os homens brancos que, definitivamente, não o elegeram.
Mesmo assim, matreiro que é, Lula sabe que nós, progressistas, ainda assim estaremos com ele se, do outro lado, estivermos diante de um fascistoide qualquer.
PAULO FERRAREZE FILHO é psicanalista, professor e pesquisador (IP/USP e UNISUL/SC)
