ARTIGOS

O humor criminoso e seus destinos

por Paulo Ferrareze Filho

Que destino o Estado deve dar a quem faz “piadas” como estas?

Uísque, para mim, tem que ser igual a mulher: puro e com 12 anos.”


Se o dia da consciência negra é feriado para os negros, quarta-feira de cinzas devia ser para os judeus.”


Se for abusar de uma criança, abusa do seu filho. Ele vai fazer o quê? Contar pro pai?”

Em 2023, dividi a mesa de um seminário com a juíza Bárbara de Lima Iseppi, que condenou o “humorista” Léo Lins a oito anos de prisão por essas e outras piadas criminosas. Descobri a coincidência quando alguns “juristas” formados pela Universidade do Instagram passaram a atacar a minha suposta “amizade” com ela. Comentaram em mensagens: “Inimiga do humor”, “inimiga da liberdade de expressão”, “esses são os lindos que tenho que sustentar pra censurar pessoas”, tudo seguido de emojis vomitando. Esses foram os melhores argumentos.

O seminário foi promovido pela Escola da Magistratura do TRF/SP. A turma era composta por juízes e servidores da Justiça Federal. Propus uma aula com base no texto “Psicanálise e Instrução Judicial”, escrito por Freud em 1906. Trata-se da conferência que Freud ministrou a estudantes de Direito da Universidade de Viena, numa época em que a Universidade do Instagram ainda não existia. O convite buscava indaga-lo sobre a eficácia da psicanálise para “induzir o próprio réu a demonstrar sua culpa ou inocência” (Freud, 1906/2015, p. 286). Freud não só rejeitou essa possibilidade como sugeriu que os juristas aplicassem seu método durante anos em casos reais, para observar os resultados.

Seja em 1906 ou em 2025, quem tenha passado pela faculdade de Direito e estudado subsunção entre norma e fato, não terá dúvida que as “piadas” de Lins são criminosas. O Direito é prenhe de efeitos para quem fala demais. A questão é direta: ou a liberdade de expressão tem limites, ou pode-se dizer tudo. E se aceitarmos que as palavras têm efeitos performativos, que agem no mundo, Léo Lins deixa de ser apenas um comediante. É um agente da barbárie, da violência e do ódio, ainda que o semblante se pretenda cômico.

Apesar do acerto técnico da sentença (refiro-me à condenação, não à dosimetria da pena), é preciso discutir os limites da resposta penal prisional. A história penal brasileira, marcada pela seletividade racial e pela superlotação carcerária, já demonstrou que o punitivismo prisional não tem produzido os efeitos dissuasórios que promete. Ao contrário: o encarceramento tende a reforçar condutas ilícitas e não estimula transformações subjetivas nos apenados. A prisão é um fracasso obsceno. Elas devolvem à sociedade um exército de sujeitos maltratados, psicologicamente afetados, deformados moral e socialmente, e potencialmente mais perigosos.

Michel Foucault já havia apontado, em “Vigiar e Punir”, que: “(a) as prisões não diminuem as taxas de criminalidade; (b) a detenção provoca reincidência; (c) a prisão fabrica a delinquência;(d) a prisão organiza, solidariza e hierarquiza grupos criminosos.” (1987, p. 234–236)

A partir da mirada psicanalítica, o crime está frequentemente ligado a conflitos inconscientes, à culpa que antecede o ato e ao desejo de punição que estrutura o próprio sujeito. A prisão, ao satisfazer apenas o gozo punitivo do Estado, deixa intacta essa estrutura psíquica. A Psicanálise, ao contrário, propõe uma escuta radical, que não busca o arrependimento formal, mas a implicação subjetiva. Só a partir dessa implicação é possível transformar o ato criminoso em experiência simbólica, desautomatizando a repetição do crime, pelo menos quando as coisas vão bem.

Não por acaso, mesmo depois de prolatada a sentença, Lins voltou aos palcos e exerceu novamente a sua liberdade de excreção, agora para uma plateia de 720 vasos sanitários:

A Preta Gil veio me processar por causa de uma piada de anos atrás. Três meses depois, ela apareceu com câncer. Bom, parece que Deus tem um favorito. Acho que ele gostou da piada. E pelo menos ela vai emagrecer.”

Caso o Tribunal confirme a sentença, o que será de Lins após anos em regime fechado? A prisão e a multa o farão refletir sobre o humor abjeto que produz? A ciência aponta que as chances são remotas… Se seguirmos com Freud, precisamos dizer: um destino transformador não se resume à detenção física. É necessário responsabilizar o sujeito pelo discurso que enuncia.

Isso significa convocar Lins a falar, mas não diante de juízes, e sim diante dos efeitos que causou: das pessoas a quem feriu e das massas a quem defenestrou. Ou mesmo com outros condenados por crimes semelhantes. Esse tipo de experiência já ocorre em alguns contextos. Nos grupos reflexivos de homens autores de violência doméstica, por exemplo, a taxa de reincidência é de 4,18%. Em média, de 20 participantes, 19 não voltam a praticar violência (Beiras et al., 2023, p. 19).

A justiça penal, ao se abrir à lógica clínica, não abandona seu papel punitivo, ela oressignifica. Em vez de castigar por castigar, oferece meios de responsabilização e reparação. Convida o sujeito a confrontar aquilo que, nele, resiste à lei. Nesse sentido, antes da prisão, Léo Lins deveria ser condenado a falar, livremente. Assumindo, claro, as consequências disso.

Paulo Ferrareze Filho é psicanalista, professor e pesquisador de pós-doutorado no Instituto de Psicologia da USP.

Referências

Beiras, A., et al. (2023). Mapeamento nacional 2023: Grupos reflexivos e responsabilizantes para homens autores de violência doméstica e familiar contra mulheres [Relatório preliminar]. Disponível em: https://margens.paginas.ufsc.br/files/2020/06/Mapeamento-Nacional-GHAV-2023-Relat%C3%B3rio-Preliminar.pdf

Foucault, M. (1987). Vigiar e punir: Nascimento da prisão. Vozes.

Freud, S. (2015). Psicanálise e instrução judicial. In Obras completas (Vol. 8). Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1906).

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