por Roger Flores Ceccon

O documentário Edifício Master (2002), dirigido por Eduardo Coutinho, é uma obra seminal do cinema documental brasileiro. Ambientado em um prédio de Copacabana, no Rio de Janeiro, o filme se constitui como um exercício de escuta do audiovisual, pois apresenta histórias de vida narradas por moradores do local, todas permeadas por afetos, perdas e ganhos, naquilo que postulo como uma política da escuta.
O filme é um dispositivo de produção de saberes sobre o viver urbano, o sofrimento cotidiano e as micropolíticas da existência. Em Edifício Master, Coutinho não apenas recolhe relatos, mas institui um espaço de fala no qual a experiência se torna enunciável, reconhecível e compartilhável. Isso dialoga diretamente com a ideia de que narrar a própria vida é um ato de afirmação da subjetividade e de produção de sentido, especialmente em contextos onde os sujeitos costumam ser silenciados ou invisibilizados pelas lógicas hegemônicas da vida em sociedade.
As histórias de vida não são simples registros biográficos ou informativos; elas são formas de conhecimento enraizadas na cultura e na experiência vivida, implicadas nas tramas da memória, da linguagem e da estrutura social. São também práticas de resistência e de cuidado de si. No documentário, cada morador do edifício, com sua voz, corpo e seu modo de estar no mundo, transforma o espaço aparentemente banal do apartamento em cena de enunciação. Ali, o cotidiano se desnuda como lugar de produção de subjetividade.
O que Coutinho realiza, então, é um gesto ético e político de escutar o outro não para classificá-lo, mas para reconhecê-lo como sujeito de saber, portador de uma verdade situada, encarnada, afetiva. Nesse sentido, o filme torna-se um arquivo de narrativas, uma cartografia de vidas comuns e infames que se tornam extraordinárias porque são ouvidas em sua singularidade.
Edifício Master é uma obra sobre o poder da palavra, sobre a necessidade de narrar e ser narrado. Um convite à escuta de histórias de vida como vias de acesso à complexidade da experiência humana, não para explicá-la, mas para habitá-la com mais cuidado, densidade e presença.
O documentário e o conceito de histórias de vida se encontram em um mesmo plano ético: o da valorização da experiência cotidiana como fonte legítima de saber e de transformação. Ao entrelaçar os depoimentos dos moradores com uma escuta cuidadosa, o filme torna-se um exercício de atenção à vida comum, aquela que, muitas vezes, passa despercebida. Ao tomarmos essas narrativas como produção de conhecimento, reconhecemos também que há, no gesto de contar e escutar histórias, uma política radical do sensível. E é talvez por isso que o filme permaneça necessário.
ROGER FLORES CECCON é professor do Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva, da Residência Multiprofissional em Saúde da Família e do curso de Medicina do Departamento de Ciências da Saúde da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e Pós-Doutor em Saúde Coletiva (UFRGS).
