por Thamara Mir

Almodóvar nunca decepciona: é um gênio!
Em seu novo filme, O Quarto ao Lado, o premiado cineasta espanhol, Pedro Almodóvar, conhecido pela estética extravagante e pelos temas provocativos que permeiam sua obra, nos captura com sua sensibilidade profunda e sofisticada.
A começar pela escolha das atrizes: Tilda Swinton e Julianne Moore. Brilhantes!
O filme inicia com o lançamento do novo livro da escritora Ingrid (Julianne Moore), em uma livraria de Nova York. É nessa ocasião que ela recebe uma notícia inesperada: Martha (Tilda Swinton), uma amiga correspondente de guerra com quem Ingrid trabalhou por alguns anos em uma revista, está internada tratando um câncer em estágio terminal. Quem lhe conta o fato é uma amiga em comum ao aparecer para pedir um autógrafo.
Ingrid, que acaba de lançar um livro justamente sobre o medo da morte, desconhecia a condição da Martha. Abalada, decide visitá-la no hospital.
A partir desse reencontro, emergem diálogos, memórias, revelações — e, sobretudo, a potência do afeto e da amizade entre duas mulheres. É essa relação que conduz a trama por caminhos dramáticos e poéticos, profundamente almodovarianos.
O câncer cervical que acomete Martha está em processo de metástase, espalhando-se pelo seu corpo. Martha já se submeteu a diversos tratamentos e não suporta mais a devastação da doença e dos efeitos colaterais da quimioterapia. Deseja pôr um fim ao seu sofrimento intenso, o qual refere como uma agonia. E então a trama central de O Quarto ao Lado é revelada: a morte assistida.
Existem três formas de morte assistida: eutanásia, suicídio assistido e ortotanásia.
– A eutanásia é um procedimento realizado por um médico, que aplica uma substância letal para provocar a morte. Pode ser voluntária ou involuntária.
– No suicídio assistido, o paciente administra a própria morte, sob acompanhamento profissional, também com uso de substância letal.
– A ortotanásia consiste na suspensão de tratamentos artificiais que prolongam a vida (e o sofrimento) de pacientes terminais, permitindo que morram naturalmente.
Na maioria dos países essas práticas são ilegais. No entanto, em algumas nações, a legislação reconhece o direito de pessoas em condições irreversíveis — geralmente com dor extrema ou doenças incuráveis — de optarem por uma morte indolor.
Na Europa, a Holanda foi a pioneira na legalização da eutanásia, em 2002. Bélgica e Espanha permitem eutanásia e suicídio assistido. Luxemburgo e Portugal autorizam apenas a eutanásia. A Suíça permite o suicídio assistido, mas criminaliza a eutanásia. No Canadá, a eutanásia é legalizada, enquanto nos EUA, o suicídio assistido é permitido em alguns estados. Austrália e Nova Zelândia também autorizam essas práticas. Na América Latina, a Colômbia legalizou a eutanásia em 1997 e o suicídio assistido em 2022. Cuba seguiu o mesmo caminho, incorporando a eutanásia ao seu sistema público de saúde em dezembro de 2023. É importante destacar que os critérios legais e clínicos para a realização de cada procedimento diferem entre si em cada um desses países.
Quanto à ortotanásia, essa prática é respaldada por leis em países como Estados Unidos, Itália, Canadá, França, Inglaterra e Japão — e em muitos desses contextos, permitir que o paciente morra em casa é um costume culturalmente aceito.
Não pude deixar de lembrar da obra do psicanalista Marcelo Veras, A morte de si, finalista da última edição do Prêmio Jabuti, quando o autor questiona se a legalização da morte assistida seria uma medida justa ou se apenas serviria para facilitar e encorajar o suicídio de pessoas inservíveis ao sistema capitalista. Uma provocação importante.
No entanto, será que manter alguém em sofrimento absoluto, preso a um leito hospitalar, contra a própria vontade e a um custo emocional e financeiro altíssimo, não serve muito mais aos interesses da medicina mercantilista?
Após assistir O Quarto ao lado, perguntei-me o que teria levado Almodóvar a fazer esse filme. Aliás, seu primeiro em inglês. Para ele, língua estrangeira. É de longa data que faço parte da comunidade cinéfila fã de Almodóvar. Assisti a todos os seus filmes e recentemente li seu livro O último sonho, que assim como grande parte ou todas as suas obras, é declaradamente autobiográfico.
A morte está presente em outros de seus filmes, como Tudo sobre minha mãe e A pele que habito, mas é em O Quarto ao Lado que Almodóvar nos entrega – em sua primeira obra falada em uma língua não materna, mas justamente na língua mais falada no mundo -, uma reflexão profunda, delicada e pungente sobre a morte assistida de si ou a escolha (e o direito) de morrer com dignidade.
E nos captura com a compaixão extrema que atravessa a relação entre as protagonistas, transitando entre o medo da morte (um sentimento universal) e a aceitação serena da finitude como parte da vida. O filme alcança uma preciosidade infinita e rara na cena de Tilda Swinton, de blazer amarelo e batom vermelho, deitada na espreguiçadeira, emanando a serenidade de quem partiu em paz.
Mas ainda há mais! Almodóvar insere, com sua habitual sutileza crítica, outros temas urgentes na narrativa. O principal coadjuvante da trama é Damian (John Turturro), escritor, palestrante e um amigo com quem ambas as protagonistas tiveram um romance no passado. As mudanças climáticas, o aquecimento global e a inércia coletiva perante a situação atual do mundo, o incomodam profundamente.
Em um almoço no restaurante à beira de um lago, Damian fala para Ingrid: “Leia e veja o que o mundo está fazendo com a ciência. Estão liberando mais CO2 no ar do que nunca. Mais cedo ou mais tarde e temo que será mais cedo, tudo isso vai para o espaço. Nada vai apressar mais o fim do planeta do que a sobrevivência do neoliberalismo e a ascensão da extrema-direita. E nós temos os dois aqui, caminhando lado a lado.”
Sabe-se que esta obra, vencedora do Leão de Ouro no Festival de Veneza e de melhor roteiro adaptado no Prêmio Goya, é uma adaptação do romance de Sigrid Nunez, What we are going through. Em entrevista, Almodóvar declarou: “este filme é sobre o estado do planeta e sobre o estado das pessoas”.
O Quarto ao Lado é o tipo de filme que ressoa, reverbera e nos toca profundamente. É um drama poético, uma elegia crítica, sobre a efemeridade e a finitude. Assim como o trecho final do conto Os Mortos de James Joyce, que aparece algumas vezes na narrativa. “Sua alma desmaiava lentamente, enquanto ele ouvia a neve cair suave através do universo, cair brandamente — como se lhes descesse a hora final — sobre todos os vivos e todos os mortos.”
Lembrei-me de um trecho do texto freudiano A Transitoriedade (1916), um dos meus favoritos, diga-se de passagem, onde Freud sustenta a ideia de que “o valor da transitoriedade é o valor da escassez no tempo. A limitação da possibilidade de fruição eleva o valor desta fruição”.
Para finalizar este ensaio, destaco que “um filme de Almodóvar”, é sempre muito mais do que uma produção cinematográfica. É um conceito ético e estético. É uma experiência que as palavras não dão conta por si só. É necessário mais do que assistir, sentir.
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THAMARA MIR é Psicóloga, Psicanalista. Mestre em Saúde Coletiva (UFSC). Especialista em Saúde Mental, Saúde Pública, Epidemiologia e Dependência Química. @tthaamaaraa @psi.thamaramir
