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Limites às sanções administrativas comináveis ao uso de drogas ilícitas

por Luiz Eduardo Cani

A partir de 2023, diversos municípios, especialmente de Santa Catarina, passaram a discutir a criação de multas para o consumo de drogas ilícitas ou, pelo menos, de algumas dessas drogas. Não raro, são incorretamente reputadas como extremamente prejudiciais à saúde algumas drogas de baixa lesividade – p. ex. a maconha – enquanto diversas drogas regulamentadas extremamente lesivas – cigarro, álcool e medicamentos tarja preta – são consideradas seguras ou de menor relevância.

Merecem destaque algumas das propostas de punição do consumo de drogas ilícitas com multas municipais e estadual. As duas primeiras iniciativas de meu conhecimento foram estabelecidas em Itapema (Lei ordinária 4.456/2023) e em Porto Belo (Lei ordinária 3.398/2023). A seguir, Balneário Camboriú elaborou o projeto de lei ordinária 5/2024 que foi aprovado e convertido em lei[i]. A lei estabeleceu uma multa de R$ 412,00 para o usuário que for pego utilizando drogas ilícitas em logradouros públicos e regulamentou sua aplicação pela guarda municipal. Em Blumenau, uma iniciativa semelhante foi proposta no projeto de lei 2.297/2024. O Estado de Santa Catarina, por sua vez, aprovou uma lei estadual cominando multa de um salário-mínimo em julho de 2024[ii], cuja aplicação foi regulamentada por decreto neste mês[iii].

Todas essas leis têm em comum duas características: (a) impõem uma multa e (b) determinam a fiscalização pelos agentes de segurança. Alguns dos municípios ainda preveem uma gratificação para o agente que efetuar a autuação.

A proliferação dessas medidas foi indiretamente impulsionada pelo STF no julgamento do RE 635.659 que tratou da inconstitucionalidade da criminalização da posse de drogas ilícitas para consumo. O questionamento da inconstitucionalidade do art. 28 da Lei 11.343/06 visou salvaguardar os direitos à autodeterminação e à intimidade contra a criminalização indevida de comportamentos sem relevância para o Estado e para terceiros – a prova da efetiva irrelevância é a regulamentação do consumo de álcool e do cigarro, as duas drogas mais lesivas para a saúde de terceiros e do usuário, respectivamente[iv]. Ao decidir a matéria, o STF reconheceu (a) a inconstitucionalidade da posse de drogas para consumo apenas em relação a um tipo de droga (maconha) e uma quantidade determinada (40 gramas), ambos não previstos em nenhum local, e (b) a indevida gravidade do tratamento penal da posse nessas hipóteses.

Apesar disso, consignou expressamente a necessidade de tratamento não-penal e a necessidade de aplicação de medidas administrativas aos agentes detidos nessas circunstâncias – portando até 40 gramas de maconha para consumo. Embora devesse ter tratado exclusivamente das medidas administrativas previstas nos incisos I, II e III do art. 28 da Lei 11.343/06 – advertência sobre os efeitos da droga, prestação de serviços comunitários e inserção em programas educativos sobre as drogas – o STF fez diversas comparações com as políticas de drogas de outros países, inserindo expressamente referências à aplicação de multas administrativas. Essa abordagem, não por acaso, contribui para uma indevida ampliação interpretativa.

Em nenhum momento constou – e nem poderia constar – qualquer autorização para que Municípios, Estados e Distrito Federal criassem multas administrativas para o uso de drogas ilícitas, mormente porque tais multas são mais gravosas do que as penas criminais estipuladas no art. 28 da Lei 11.343/06. Daí por que é necessário tecer alguns comentários.

As leis municipais e estadual partem do critério estabelecido na Lei federal 11.343/06 acerca das drogas criminalizadas: ausência de autorização legal ou em desacordo com a autorização. Trata-se, pois, de matéria penal, não administrativa, conforme reconhecido expressamente, por exemplo, na justificativa do projeto de lei ordinária 5/2024 de Balneário Camboriú: “a sanção administrativa busca oportunamente frear o uso indevido de drogas, defendendo o interesse dos cidadãos e reprimindo o consumo de substâncias ilícitas em espaços públicos”.

O objetivo do projeto é “desestimular o consumo de drogas em nosso Município, agindo de forma preventiva e pedagógica, sem obstar o tratamento dispensado ao usuário de drogas constante na Lei Federal nº 11.343/2006”. De acordo com o então chefe do executivo municipal de BC, isso seria necessário diante do aumento do consumo de drogas que coloca “cada vez mais em risco a vida e a saúde das pessoas”. Ou seja, o objetivo da medida seria aumentar a proteção à saúde e à vida dos indivíduos que vivem, trabalham e transitam no território municipal.

Não há dúvida de que cuidar da saúde é competência administrativa comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios (art. 23, II, da Constituição Federal) e nem de que esses entes têm competência concorrente para legislar sobre a defesa da saúde (art. 24, XII, da Constituição Federal). Entretanto, os atos executivos e legislativos por meio dos quais os Municípios e o Estado de Santa Catarina pretendem implementar as medidas de saúde devem ser aptos a atingir os objetivos do modo menos restritivo possível aos direitos fundamentais.

A criminalização das drogas também é justificada frequentemente pela suposta proteção à saúde pública. Nesse sentido, as leis municipais e estadual terão o mesmo resultado pífio e incongruente da criminalização: a persecução terá efeitos mais prejudiciais do que o próprio consumo da droga, ao mesmo tempo em que não terá nenhum resultado positivo na redução do consumo de drogas. Diversas pesquisas nacionais e internacionais provam o fracasso da “guerra às drogas”. Até mesmo a ONU fez recuos parciais em relação à guerra particular que a própria entidade deu início com a Convenção Única sobre Entorpecentes, a Convenção sobre Substâncias Psicotrópicas e a Convenção contra o Tráfico Ilícito de Entorpecentes e Substâncias Psicotrópicas. Em 2014, por exemplo, a ONU iniciou uma campanha pela descriminalização da posse e do uso de drogas, a qual acabou renunciando posteriormente[v].

Além disso, o reconhecimento da inconstitucionalidade parcial – criminalização da posse de pequena quantidade de maconha para consumo – do art. 28 da Lei 11.343/06 pelo STF demonstra o desacerto da política legislativa de criação de multas administrativas. Além do caráter nitidamente penal e inconstitucional das leis municipais e estadual, as suas medidas vão de encontro aos resultados das descobertas científicas.

Esse argumento poderia ser rechaçado sob a alegação de que a licitude penal não se confunde com a licitude administrativa (teoria da autonomia das esferas), mas, além de ser duvidosa a constitucionalidade da importação nacional da teoria, com violação ao ne bis in idem, a multa aplicada é mais gravosa que a pena criminal de advertência, cominada ao crime previsto no art. 28 da Lei 11.343/06. Ou seja, uma pessoa autuada em Santa Catarina será punida mais gravemente do que uma pessoa presa em flagrante em outra cidade.

Outro problema grave dirá respeito à atribuição para aplicação da multa e a possibilidade de cumulação da multa nos municípios catarinenses que também determinam a multa. Assim, por exemplo, alguém que for preso fumando um cigarro de maconha em Balneário Camboriú será multado pelo Município ou pelo Estado? Existirá hipótese de aplicação de ambas as multas? Em quais circunstâncias?

A saúde pública é muito melhor promovida com campanhas de conscientização e mitigação dos danos. É muito mais relevante, portanto, implementar medidas no sistema de educação e no sistema de saúde. Além de ser possível criar medidas menos restritivas aos direitos fundamentais, sobretudo à liberdade e à igualdade, pode-se chegar mais próximo de atingir o objetivo do projeto de lei.

Pode-se, ainda, considerar o tratamento desigual entre as drogas. As leis excluem expressamente as duas drogas mais lesivas à saúde individual (cigarro) e coletiva (álcool) e se omitem acerca do consumo de medicação sem receita médica ou com receita vencida, uma incongruência apontada frequentemente nos estudos sobre drogas.

Tais leis ainda padecem de duas inconstitucionalidades. Por um lado, acabam com a impessoalidade dos atos administrativos (art. 37 da Constituição Federal), estimulando uma fiscalização pessoalizada com a oferta de recompensa para os guardas responsáveis pela autuação. Por outro, usurparam atribuição preventiva criminal das polícias (art. 144 da Constituição Federal). Esse segundo ponto é importante porque, ainda que seja aprovada a Proposta de Emenda à Constituição 57/2023, com a consequente inclusão das guardas municipais no rol de órgãos de segurança pública, esse órgão tem atribuição a guarda de patrimônio municipal e, somente quando conveniada com o DETRAN respectivo, para a fiscalização de trânsito local.

Enfim, se, apesar das confusões e dos limites apontados anteriormente, for estabelecida uma infração administrativa a nível federal, equivalente à criminalização da posse de drogas para consumo – em absoluta violação à intimidade e à autodeterminação –, a sanção administrativa não pode, em nenhuma hipótese, desatender a quatro limites fundamentais: (a) proporcionalidade: a multa não pode ser mais gravosa do que as sanções administrativas cominadas na Lei 11.343/06, (b) dignidade: o valor da sanção não pode impossibilitar o sustento da pessoa autuada, (c) competência privativa do Congresso Nacional: apenas a União pode legislar sobre a matéria em razão do caráter eminentemente penal, e (d) igualdade: apenas a União poderia estabelecer um tratamento isonômico em todo o território nacional.

LUIZ EDUARDO CANI é Pós-Doutor e Doutor em Ciências Criminais. Professor de Direito Penal e Processo Penal. Consultor Jurídico e Parecerista.


[i] https://www.cnnbrasil.com.br/nacional/balneario-camboriu-aprova-lei-para-multar-usuarios-de-drogas-2

[ii] https://g1.globo.com/sc/santa-catarina/noticia/2024/07/17/lei-multa-drogas-locais-publicos-sc-sancionada.ghtml

[iii] https://g1.globo.com/sc/santa-catarina/noticia/2025/04/16/decreto-multa-flagrado-drogas-publico-sc.ghtml

[iv] NUTT, David J.; KING, Leslie A.; PHILLIP, Lawrence D. Drug harms in the UK: a multicriteria decision analysis. The Lancet. v. 376, p. 1558-1565, 2010, p. 1558-1561. Disponível em: https://www.ias.org.uk/uploads/pdf/News%20stories/dnutt-lancet-011110.pdf. Acesso em: 21 abr. 2025.

[v] https://www.bbc.com/portuguese/noticias/2015/10/151019_onu_proposta_descriminalizacao_drogas_rb

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