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A Substância: ditadura monstruosa sobre os corpos femininos

por Thamara Mir

O segundo longa-metragem da diretora e roteirista francesa Coralie Fargeat, vencedor do prêmio de Melhor Roteiro no Festival de Cannes 2024, tem dividido as opiniões de críticos e do público — e isso não parece ser à toa. Contracenado por Demi Moore, Margaret Qualley e Denis Quaid, “A Substância” é um filme fantástico, do tipo que consegue fazer você sentir vontade de abandoná-lo e, ao mesmo tempo, continuar assistindo para saber até onde aquele espetáculo de horror vai chegar.

Embora classificado como terror — filmes desse gênero geralmente criam ameaças irreais para provocar medo, repulsa e fobias — o filme de Fargeat está ancorado em uma realidade brutal que incomoda muito mais do que assusta. Apesar de certa dose de absurdo, da quantidade de sangue e da metamorfose monstruosa que dominam a representação estética e visual da obra, não se trata de um horror sobrenatural.

Com uma abordagem típica do body horror – um subgênero do terror que utiliza transformações físicas visualmente impactantes, repulsivas e carregadas de uma carga psicológica profunda -, “A Substância” se apresenta como uma sátira hiperbólica genial, que coloca em cena, literalmente, uma condição da qual nenhuma mulher escapa: os padrões ideais de beleza e estética. Ou você se encaixa, ou está excluída. E o etarismo, tema central da trama, só potencializa a impossibilidade de alcançar esses padrões, afinal, quanto menos jovem é a aparência da mulher, menor é o espaço que lhe é concedido para existir fora dessas expectativas. Mais invisível ela se torna em um mundo que reduz sua identidade à estética. Envelhecer, processo natural da vida, é o horror que se tenta evitar a todo custo.

“Fargeat afirmou em entrevista que o filme trata de como as mulheres são moldadas desde cedo por expectativas externas, gerando um constante ódio a si mesmas e a sensação de que nunca são boas, bonitas, magras ou jovens o suficiente.”

Sabe-se que a imposição de padrões de beleza afeta as mulheres em todos os ciclos de vida, gerando problemas relacionados a baixa autoestima e um sofrimento profundo que pode desencadear outros agravos, como a depressão, os distúrbios alimentares, principalmente, bulimia e anorexia, abuso de medicamentos e também a busca constante por procedimentos estéticos, cirúrgicos ou não.

Pesquisas apontam que os países que mais realizam cirurgias plásticas no mundo são: Estados Unidos, Brasil, Japão, México e Itália. Os procedimentos cirúrgicos mais comuns são: Lipoaspiração, Aumento dos seios, Cirurgia de pálpebras, Rinoplastia, Abdominoplastia. Os procedimentos não cirúrgicos mais populares são: Toxina botulínica, Ácido hialurônico, Depilação, Lifting facial, Redução de gordura. A distribuição de gênero em relação às cirurgias plásticas no mundo é de 86,3% realizadas por mulheres e 13,7% por homens. E só na última década, houve um aumento de quase 150% no número de procedimentos estéticos entre jovens de 13 a 18 anos, em sua grande maioria, meninas.

A taxa de mortalidade associada à lipoaspiração, uma das cirurgias estéticas mais realizadas no Brasil e no mundo, varia entre 2,6 e 19 mortes por cada 100 mil cirurgias. Além do risco de óbito, outros riscos associados às cirurgias plásticas incluem: necrose da área operada, surgimento de nódulos, queimaduras ou danos à pele, irritação ou manchas na pele.

O Brasil é o segundo país que mais realiza cirurgias plásticas no mundo, atrás apenas dos Estados Unidos. Também é o país que mais consome remédios para emagrecer no mundo, segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS).

É evidente que há uma indústria que lucra muito com a insatisfação das mulheres com seus corpos, a busca incessante pelo corpo ideal e pela aparência eternamente jovial.

É sobre essa pressão estética que as mulheres sofrem, frequentemente infligindo violências a si mesmas, num processo adoecedor e até mesmo enlouquecedor, para manterem um padrão de beleza inalcançável, que a narrativa crítica do filme é construída.

A história é sobre uma atriz hollywoodiana, apresentadora de um programa de ginástica, que é dispensada do seu trabalho ao completar 50 anos e será substituída por uma atriz mais jovem. O impacto psicológico e emocional desta situação acaba levando-a a experimentar uma droga ofertada no mercado clandestino para rejuvenescer e manter viva sua melhor versão. Uma versão (bem mais) jovem de si.

A partir deste contexto específico, uma série de eventos fictícios dialoga através de uma linguagem propositadamente exagerada e absurda com a realidade, conduzindo o fio narrativo desta sátira desconcertante e visceral, sobre um tema mais do que relevante na contemporaneidade. A desigualdade de gênero, o machismo estrutural, o etarismo e a monstruosidade como esses determinantes sociais provocam inúmeras violências que afetam a saúde e vida das mulheres, tornando “A Substância” não apenas uma obra chocante e desconfortável, mas, sobretudo, necessária.

THAMARA MIR é psicóloga, psicanalista, mestre em Saúde Coletiva, pesquisadora sobre Violência e Saúde, especialista em Saúde Mental, Saúde Pública e Epidemiologia.

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