Flávia Tridapalli Buechler

Por que pensar sociedade e violência a partir da Psicanálise? Afinal, o saber psicanalítico sempre esteve atrelado ao campo da saúde mental, da psicopatologia, do sofrimento humano… áreas do conhecimento que em nossa época são demasiadamente pensadas desde uma perspectiva individual/particularizada. Acontece que o todo (o conjunto social) não se forma sem as partes (os indivíduos), e, nesse sentido, indivíduo e sociedade compartilham de uma condição de interdependência. O todo só pode ser analisado se tomarmos como objeto de investigação as relações que se estabelecem entre as partes – isto é, se refletirmos sobre como são as formas pós-modernas de ir em direção ao outro.
Encontramos aí outro ponto de discussão importante e que se refere ao estatuto do outro na sociedade atual: o outro é meu semelhante? É meu inimigo? Talvez meu adversário? Ou, ainda, um objeto do qual posso me servir para determinado fim? Me parece que pensar as relações interpessoais, bem como pensar o estatuto do outro em nossa época, são dois caminhos possíveis para refletirmos acerca dos atuais fenômenos de violência que emergem no conjunto social e que atravessam, de modo muito singular, cada parte que compõe o todo. Assim, ao final desse texto, espero que seja possível ao leitor ensejar reflexões para a pergunta inicial que ora coloco em outras palavras: de que nos serve pensar a sociedade e os fenômenos de violência à luz da psicanálise?
No texto O mal-estar na civilização (1930/1996a), Freud escreve que embora a humanidade almeje a felicidade como destino, esta, a felicidade, nunca se realizará por completo para os humanos, pois se assim viesse a se realizar, o desejo se extinguiria, posto que a condição desejante existe na medida em que algo nos falta. Nesse sentido, a tríplice falta-desejo-movimento é o que estrutura a parcialidade, a insatisfação, como parte da economia do aparelho psíquico. Já em As pulsões e seus destinos (1915/2004), Freud refere que o motor dessa economia do aparelho psíquico tem um nome e se chama pulsão, esta, é uma força constante que age no interior do humano e que não busca por outro objetivo que não seja a sua satisfação. Freud explica que a pulsão se difere dos instintos, pois, na medida em que os instintos se caracterizam como um saber da espécie que trabalha a favor da sobrevivência, ou seja, da manutenção da vida, as pulsões podem, por vezes, trabalhar contra a sobrevivência, já que o que ela busca é a satisfação, independente do que esteja em jogo ou do preço que pagaremos por isso. O nome que Freud deu a essa força constante e que voa abaixo do radar da nossa consciência é pulsão de morte[1], noção que ele conceitualiza no texto Além do princípio do prazer (1920/1996b).
Mas voltemos ao texto O mal-estar na civilização (1930/1996a), já que proponho como objetivo principal hoje pensar a sociedade, a sociedade dita civilizada. Nesse texto Freud também descreve as três principais fontes de mal-estar da humanidade, são elas: 1ª) a impossibilidade de domínio sobre a força da natureza; 2ª) a finitude do corpo; e 3ª) a relação com os outros. Freud não só evidencia que a relação com os outros é uma das fontes de nosso mal-estar como a enfatiza como a mais impactante, isso quer dizer, sofremos mais da relação que estabelecemos com o outro que da nossa impotência ante à força da natureza e à finitude do corpo. Curioso notar que nesse texto que carrega no título o termo civilização, termo ideologicamente relacionado à forma de sociedade mais desenvolvida ou mais distante da natureza, encontramos tanto a noção de mal-estar, quanto a sua relação com o outro.
Ora, há uma dificuldade aí, ou em termos psicanalíticos, um conflito inerente ao laço (ou nó) civilizatório. Se por um lado a civilização é onde a relação com o outro estaria mais distante das relações que ocorrem no reino animal, por outro, é essa mesma relação com o outro que nos gera mal-estar, que nos faz sofrer e que nos atormenta. Nesse sentido, há uma tensão própria ao nó civilizatório que nos “empurra” àquilo que Lacan (1958/1998a) nomeou como as três paixões humanas, a saber: o amor, o ódio e a ignorância.
Chegamos então, a um afeto que nos “aproxima”[2] do ato violento: o ódio. No texto Totem e Tabu (1913/1996c), Freud constrói um mito que é conhecido por explorar o trânsito que os humanos fazem da natureza à sociedade. Nesse mito, Freud faz referência à existência de uma horda primeva, na qual um pai-chefe-da-tribo detém o poder sobre tudo e todos, isso significa dizer que a horda funciona arbitrariamente conforme os caprichos desse soberano. Freud então sinaliza que a humanidade faz seu trânsito da horda à ordem civilizatória, quando os irmãos (todos aqueles que estão submetidos ao poder do soberano) se reúnem de modo a formar uma aliança para destituir o pai do lugar de exceção que ele ocupa. Lugar daquele que supostamente gozaria sem limites, ou seja, daquele que supõe não estar assujeitado à parcialidade da economia pulsional. E como vocês acham que os irmãos realizam essa destituição? Através do parricídio, ou seja, do assassinato do pai e da instauração de um totem. Com o totem, o pai morto se mantém presente de modo estritamente simbólico e serve de representação institucional para os irmãos, lembrança do que acontece com quem almejar ocupar o lugar de exceção. Nesse sentido, em Totem e Tabu (1913/1996c), Freud sugere que a ordem civilizatória surge de um ato de violência, isto é, a partir de um crime de ódio coletivo.
Pois bem, de que nos serve essa referência ao mito freudiano? 1º) o mito nos lembra que na instauração original da lei (totem) há um ato de violência (crime), assim, o que funda as leis civilizatórias está muito menos articulado à instauração da justiça e muito mais articulado às repressões pulsionais necessárias para que a vida em conjunto, sem que matemos uns aos outros, seja minimante possível; e 2º) o subtítulo desse texto freudiano é algumas concordâncias entre o psiquismo do neurótico e dos selvagens, ou seja, de que não podemos esquecer que o contrário da civilização é a natureza, e, portanto, a barbárie, a crueldade, estão inscritas na ordem civilizatória e não fora dela. Afinal, ninguém testemunha um leão com ódio do outro, ou ainda, ninguém testemunha um crime passional no reino animal. Grosso modo, “com a Lei e o Crime, começa o homem” (Lacan, 1950/1998b). Nestes termos, o que o mito freudiano nos faz lembrar e que Lacan, no texto Introdução teórica às funções da psicanálise em criminologia (1950/1998b) também reconhece é que não podemos desumanizar o criminoso, pois o ato criminoso é demasiadamente humano.
Paremos para observar, ante a notícia de um crime horroroso não raro escutamos os não-criminosos professarem seus desejos de morte e ódio contra o criminoso de fato. Acontece que a ordem civilizatória, fundada por meio do ato criminoso instaurador da Lei – não voltarás a matar –, para que ela possa vigorar, convoca-nos a nos implicarmos na mestria do assassino que há em cada um de nós, precisamente para que não venhamos a abolir a própria Lei que funda a civilização. Para tanto, “a Lei só pode decretar o domínio do assassino. Nada mais! Não, de modo algum o seu extermínio, porque o extermínio do assassino, ainda que hipocritamente legal, é [também] um assassinato. A Lei entraria em contradição imediatamente, isto é, eliminaria a si mesma” (Magno, 1981, p. 12).
O que se pretende pôr em evidência com estas considerações psicanalíticas? Ao menos dois pontos: 1º) de que é urgente, enquanto sociedade, pensarmos o que há de pernicioso em nossa sociedade que tem empurrado as pessoas seja para o adoecimento (psiquiatrização da vida), seja para os atos de violência e o ódio contra o outro (atos que vão da intolerância à diferença até o assassinato). Talvez a pergunta sobre o estatuto do outro em nossa época nos ajude a pensar esse ponto; e 2º) de que não há resposta fácil para uma conjuntura tão complexa como é a da condição humana. Nesse sentido, não é possível fomentarmos a existência de qualquer teoria acerca da possível existência de “instintos criminosos” (Lacan, 1950/1998b, p. 148). Lacan ressalta este comentário em uma crítica à teoria do psiquiatra Cesare Lombroso que, no século XIX, criou a antropologia criminal embasada no argumento da hereditariedade e justificada através dos estudos de Charles Darwin. Recentemente, após o crime de assassinato de crianças em uma creche do município de Blumenau/SC, a teoria de Lombroso foi citada por uma mulher que, nomeando-se psicanalista, justificou o seu espanto com a atitude criminosa do assassino, pois ele não apresentava biotipos corporais que denunciassem seus instintos criminosos. Comentário compreendido por vários profissionais, em especial, aqueles que exercem o ofício da psicanálise, como racismo científico.
O ser humano perverte o instinto na medida em que se constitui como ser pulsional, e é por isso que “[…] a ferocidade do homem em relação a seu semelhante ultrapassa tudo o que podem fazer os animais [que são seres governados pelo instinto], e que, ante a ameaça que ela [essa ferocidade] representa para a natureza inteira, os próprios carniceiros [animais irracionais] recuam horrorizados” (Lacan, 1950, p. 148).A psicanálise pode parecer pessimista a partir destas considerações, mas ela não levanta estes pontos para produzir impotência, pelo contrário, ela denuncia os recalques de nossa racionalidade e civilidade claudicante.
Ora, não foi Freud que, junto com Copérnico e Darwin, desferiu uma das três feridas narcísicas da humanidade? Se com Copérnico, descobrimos que a Terra não é o centro do universo; e com Darwin, descobrimos que descendemos dos animais; com Freud, descobrimos que o nosso aparelho psíquico é dividido e que a razão não é fiadora da civilização. Há forças pulsionais, tensões, conflitos de interesses e conteúdos recalcados que escapam de nossa consciência e nos governam, seja na ralação com nós mesmos, seja na relação com os outros. Seguindo essa lógica, quanto mais uma sociedade trabalha para recalcar a barbárie que ela mesma produz e fomenta, mais ela contribui para a precipitação de atos de violência que estão sempre à espreita do corpo social.
Estas considerações psicanalíticas também não servem para desresponsabilizar os sujeitos pelos atos que escolhem realizar, precisamente porque a psicanálise trabalha para a implicação do sujeito naquilo que deseja e/ou realiza, seja isso moralmente condenável ou não, afinal, há algo de semelhante entre a confissão que a criminologia almeja e os sentimentos de culpa dos neuróticos que “se confessam” na situação analítica (Lacan, 1950/1998b). Contudo, não podemos negar a existência dos assassinos despossuídos de culpa, aqueles que são dotados de perversidade e que acabam por revelar a expressão mais clara do ódio e da inimizade do humano para com si mesmo e para com seu semelhante. Afinal, “não é concebível ao pior animal carniceiro, nem o holocausto, nem […] os desaparecidos, [crimes] sempre executados sob a proteção de racionalidades que os justificassem em nome de algum bem. Essa crueldade implica a chamada humanidade” (Stahelin, 2017, p. 19, como citado em Zuberman, 1995, s/p, tradução livre).
Por fim, ficam as questões: quais recursos podemos construir para minimizar o que há de pernicioso na espécie humana? Será que a nossa conduta deve se dar de modo apenas vigilante, punitivo e pericial? O ódio, sendo uma das paixões humanas, deve permanecer sendo reprimido? Como criar espaços legítimos de fala para esse afeto, a fim de que seja viável alguma condução possível para o “tratamento” do ódio?
Diante destas questões fica ao leitor o convite à reflexão sobre esse tema tão central em nossa época e que por vezes perde potência em meio à avalanche de respostas genérico-cientificistas que rechaça o mal-estar inerente à condição humana e à vida em sociedade. O nó civilizatório é responsabilidade de todos e o seu “tratamento” não ocorre sem a implicação das partes na formação de coletividades que trabalhem a favor da diferença e de políticas de vida. Por fim, enquanto psicóloga, psicanalista e professora, penso que cabe, precisamente à comunidade acadêmica, não renunciarmos à empreitada de fazer vigorar o rigor teórico e a ética da não homogeneização do sujeito em toda investigação e fabricação de discurso que se ocupe do humano e suas relações.
FLÁVIA TRIDAPALLI BUECHLER é psicóloga e psicanalista. Mestre em Psicanálise: Clínica e Cultura pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Doutoranda do PPG em Psicologia da Universidade Federal Fluminense (UFF). Professora do departamento de Psicologia do Centro Universitário Dante (UNIDANTE) de Blumenau/SC.
Referências bibliográficas
Freud, S. (1996a). O mal-estar na civilização. In Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud, vol. XXI. Rio de Janeiro: Imago. (Originalmente publicado em 1930)
Freud, S. (1996b). Além do princípio do prazer. In Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud, vol. XVIII. Rio de Janeiro: Imago. (Originalmente publicado em 1920)
Freud, S. (1996c). Totem e tabu. In Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud, vol. XIII. Rio de Janeiro: Imago. (Originalmente publicado em 1913)
Freud, S. (2004). Pulsões e seus destinos. In Obras Psicológicas de Sigmund Freud, vol. I. Rio de Janeiro: Imago. (Originalmente publicado em 1915)
Lacan, J. (1998a). A direção do tratamento e os princípios de seu poder. In Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor. (Originalmente publicado em 1958)
Lacan, J. (1998b). Introdução teórica às funções da psicanálise em criminologia. In Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor. (Originalmente publicado em 1950)
Magno, M. D. (1981). Psicanálise & polética. Rio de Janeiro: aoutra Editora.
Stahelin, L. S. (2007). O homicídio a partir do conceito psicanalítico de supereu. Dissertação de mestrado. Centro de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Santa Catarina. Recuperado de https://repositorio.ufsc.br/bitstream/handle/123456789/90520/239811.pdf?sequence=1
[1] Uma das noções de sintoma na psicanálise tem a ver com a pulsão de morte, por exemplo: inconscientemente, um sujeito é capaz de sofrer com crises recorrentes de enxaqueca, sem causa orgânica aparente, sintoma que lhe gera desconforto e mal-estar, mas que ao mesmo tempo é também um desconforto menor do que uma coragem que supostamente o sujeito precisa produzir para tomar uma decisão importante na sua vida, uma escolha, por exemplo, que exige que o sujeito desagrade o outro.
[2] Não podemos esquecer que em nome do amor não raro acontecem atos de violência, o crime passional é um exemplo extremo. Assim como, quando resignados à desresponsabilização da ignorância, ou mesmo tomados por ódio, estruturas de opressão e violência não deixam de se perpetuar na história. À título de exemplo temos o racismo estrutural, fato que de múltiplas maneiras segue sendo negado.
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