por Tainá Machado Vargas

“Oppenheimer” (2023), dirigido por Christoffer Nolan e com Cillian Murphy, revela as angústias existenciais de um personagem real, que viveu desafiando a lógica dos “gênios excepcionais”. Estes indivíduos nascem predestinados a carregar um saldo moral superior em relação às pessoas comuns. No entanto, o talento, por vezes autoritário da genialidade, cobra deles pequenas grandezas, expectativas imensas sobre o futuro, e propósitos civilizatórios que, na maioria das vezes, acabam se tornando peças na maquinaria da opressão política. Eles são vistos como um investimento substancial para o avanço de seus países.
A dramaticidade da arte funciona como uma janela para dignificar questões históricas. A narrativa que expõe alguns trechos da vida do cientista, questiona propostas de genialidade, o poder, ambições intelectuais e as ações intervencionistas dos EUA, em âmbito global. À medida que exploramos o enredo do filme, serão apresentadas algumas referências históricas sobre a vulnerabilidade internacional de alguns países, subjugados por iniciativas do imperialismo norte-americano. Assim, a presente análise traçará alguns elementos paralelos que permanecem relevantes no mundo contemporâneo, através da ciência e dos dilemas existenciais vividos por aqueles que moldaram a trajetória da humanidade, até este presente momento.
A Hipocrisia da Genialidade
O filme mantém seu foco inabalável ao registrar, como pano de fundo, a polarização ideológica de uma guerra nuclear desigualmente tratada. De um lado, emerge o nacionalismo japonês; de outro, o imperialismo norte-americano, assombrado pela ameaça do comunismo, e pelo pânico da nazificação da Europa. As decisões de direção, por sua vez, são deixadas ao discernimento do público, incumbindo-lhe a tarefa de buscar suas próprias referências acerca da ruptura diplomática entre Japão e EUA, ocorrida em 1941. O estopim desse conflito repousa na ofensiva militar japonesa contra o Porto de Pearl Harbor, no Havaí. Em retaliação, os Estados Unidos empregaram toda a sua maestria tecnológica da época, em um contra-ataque nuclear. Campos de concentração Japonesa também foram construídos nos EUA, e em outros países colaboracionistas; como Canadá, México e Brasil[1], com o mesmo propósito de promover a segregação racial, o confisco de bens e propriedades, e a privação de direitos políticos às populações civis nipo-americanas e seus descendentes.
Assim, o filme vai criando as suas possibilidades estilísticas e sensoriais, vai conduzindo um quebra cabeça de imagens e sons, ao longo de 3h de apresentação, de maneira surpreendente. Nestas, a memória, o tempo e as ambições, na formação da subjetividade deste personagem real, tratam de demarcar espaços de influência e de masculinidade, representativas. Destacando-se entre as escolhas militares pragmáticas mais debatidas, encontra-se a decisão de Oppi acerca das cidades a serem aniquiladas, incluindo a sugestão de uma bomba nuclear de efeito complementar. Tal escolha fragmenta o foco dos ataques, consolidando ainda mais o poderio marcial dos EUA. Logo após, os laboratórios de guerra foram evoluindo prerrogativas, em busca de impor uma “segurança militar universal”. Assim, criam-se métodos próprios de “defesa dos interesses norte-americanos” e aliados, contra todos que desafiem seus modelos democráticos. Com efeito, todos estes recursos químicos e biológicos, que evolução científica pode comtemplar, passariam a ser usados para o alcance do biopoder.
Aos poucos, a articulação política vai interrogando a moralidade da ciência, os seus excessos racionais e a inclinação a valores nacionalistas. Ao mesmo tempo, Oppi não se pensa como um ‘senhor da guerra’, por ter criado o “homem nuclear”. Ele é o homem científico, capaz de realizar utopias invertidas. Um agente menor de uma narrativa do capitalismo gore, que segue relativizando a história, e impondo domínio financeiro sobre todas as culturas.
Ignorância Voluntária e o Futuro Precário
Neste reduto, as tecnologias de guerra são submetidas a testes que ultrapassam os limites humanos, e sem sofrer embargos da comunidade internacional. O momento que melhor caracteriza a eloquência dessa questão, é quando Albert Einstein orienta Oppen a compartilhar suas descobertas científicas com outros cientistas alemães e soviéticos, alertando sobre a destruição do planeta, caso a manipulação nuclear seja incorporada como revide de guerra, por ambas as nações. Aqui, a ingenuidade se opõem como questão; como confiar na comunidade internacional e em organizações (como a ONU e a OTAN, atualmente), quando os detentores do controle sobre a tecnologia, ao mesmo tempo em que a testam em civis, são justamente os Estados?
A direção de Nolan inclui muitos personagem que, com suas participações, suas expressões ideológicas, seu pertencimento religioso, sindical e nacionalidades distintas, ajudaram a redefinir um “fim da história”, para o uso da física tradicional. Isto é, muitos intelectuais judeus, alemães, marxistas e democratas, colaboraram com o projeto das bombas nucleares, sem passar pelo exame de consciência que despertou Oppenheimer. Pois, o peso de suas descobertas permaneceria incentivando atividades nucleares e o iminente perigo da guerra fria que viria após.
Em determinada sequência, Lewis Strauss (presidente da AEC), procura justificar as suas traições contra Oppi, argumentando que a satisfação dos desejos punitivos e a culpa por suas decisões, superariam a satisfação e a prodigiosidade científica, subjacente à materialização do conhecimento que ele revelara ao mundo. Em sânscrito, tal trecho passa a fazer sentido: o êxito da sua criação “se torna a morte” e a culpa, mas não a ponto levá-lo a retirar-se da vida. Na pulsação da energia reside o espelho que reflete o “humano e o não-humano”, entrelaçados na pulsão de morte freudiana. Àquela que refaz a força, molda e desfaz o destino da humanidade.
Nesse contexto, a percepção da realidade, desenha uma verdade cruel que emerge à superfície, apenas para ser submersa no esquecimento, anos mais tarde. Oppi enfrenta, simbolicamente, o inferno de perder o prestígio pessoal de uma vida inteira, além de aceitar que foi usado como uma peça de xadrez, movimentando interesses no tabuleiro das relações internacionais. Essa cena é revelada quando Oppenheimer é agraciado com prêmios, e reencontra antigos colegas que o haviam ostracizado dos círculos acadêmicos, construídos em virtude da fama associada à sua imagem.
A Máquina Destrutiva do Imperialismo
Oppenheimer, como criador, usou da sua matéria-prima intelectual para conceber uma tragédia imperialista sem precedentes, porém, não foi o único a emprestar o seu talento para criações abjetas. Mais tarde, novas armas químicas seriam aperfeiçoadas em outros projetos ultra secretos como o MK-ultra, desenvolvido e aplicado por Ewen Camaron, em 1950[2] O objetivo da operaçãoera alcançar controle mental e obter vantagens sobre a consciência do inimigo, através de lavagem cerebral. Torturas psicológicas, falsas memórias e extração de confissões ilegais foram conduzidas usando grandes doses de LSD. Em 1955 e 1975, o fisiologista e botânico Arthur Galston criaria o agente Napalm (agente laranja), como um trunfo pelo presidente John Kennedy, na Guerra do Vietnã, entre 1961-1971. Estimam os cientistas de que mais de 80 bilhões de litros de herbicidas altamente contaminantes, foram despejados em rio e plantações, sedimentados ao solo[3]..
Já o gás mostarda (agente amarelo) e outros agentes químicos, foram testados pelo exército americano em soldados afro americanos, nipo-americanos e porto-riquenhos, como uma estimativa da reação do gás no corpo dos japoneses[4]. Em julho de 1917, na 1ª Guerra Mundial, essa arma foi autorizada por Harry Trumam (1949–1953), contra países alinhados ao eixo (Alemanha, Itália e Japão). E os ataques continuam. Em setembro de 2013, o comunicado do Secretário John Kerry de Estado americano no governo de Barack Obama, declarou que o gás Sarin foi lançado como arma química contra civis e crianças, no território de Damasco, capital da Síria[5].
O desenlace definitivo exibe a dualidade de Oppenheimer – um ser conscientemente investido da capacidade de enfrentar escolhas morais de ordem crucial, planejá-las e concretizá-las, mas a sua ambiguidade o torna inábil na gestão do aspecto mais sombrio da sua personalidade. O aparelho psíquico da guerra é o motor do capitalismo neoliberal, por isso movimenta bilhões de dólares, todos os meses, administrando intervenções políticas e militares, fora do território dos EUA. É por autonomia de condições que países como Vietnã, Camboja, Iraque e, atualmente, Niger, Burkina Faso, afrontam instituições hegemônicas pós-coloniais. lutam por uma descolonização revolucionária e contra hegemônica, renunciando subordinações neocoloniais, asfixias políticas e dependências tecnológicas (Losurdo, 2010).
Em última análise, Oppenheimer provou ao mundo que a guerra nuclear era possível, e que o mundo não aprendeu nada com o seu exemplo. O imperialismo americano não desenvolve apenas necropolítica tecnológia (com o uso de drones e I.As). Propicia que o capitalismo financeiro reestruture as “liberdades” das instituições, defina limites democráticos, e decida quem deverá receber apoio ou embargo internacional.
O filme Oppenheimer, demonstra que a genialidade não está acima do bem, do mal e, principalmente, dos interesses antissociais dos países que a governam. Enquanto as armas de extermínio em massa são lançadas no Japão – ou prometidos à China – quem sabe, penso eu em que medida essa análise de Nolan pode nos levar adiante, sobre a verdadeira natureza do triunfo com avanços biológicos e tecnológicos, e os caminhos que a humanidade ainda precisará percorrer para recuperar a sua pós-humanidade.
TAINÁ MACHADO VARGAS é mestra em Sociologia do Direito pela UNILASALLE/RS e faz pesquisa pelo CNPq sobre trabalho, gênero, política e neoliberalismo
REFERÊNCIAS:
LOSURDO, Domênico. Colonialismo e Luta anticolonial: desafios da revolução do século XXI.1.ed. São Paulo: Boitempo, 2020. Organização Jonas Manuel; tradução Diego Silveira.
Ref. Necropolítica. Achille Mbembe. Necropolítica. Biopoder, soberania, estado de exceção, políticas de morte. n-1 edições, 2018.
Ref. Capitalismo Gore. VALENCIA, Sayak. Capitalismo Gore. Melusina; 1ª ed.,2010.
Ref. Filme: Anime Gen Pés Descalços, 1983.
[1] <O campo de concentração que o México abriu na 2ª Guerra sob pressão dos EUA – BBC News Brasil>
[2] <MK-Ultra: o programa secreto da CIA que buscava formas de controle mental – BBC News Brasil>
[4]Relatório oficial (1944). <MustardGasStudy – DocumentCloud>. <Opera Mundi: EUA admitem que testes em humanos com arma química na 2ª Guerra tiveram critério racial (uol.com.br)>
[5] <EUA dizem ter provas do uso de gás sarin. Al-Assad está pronto para enfrentar ataques (rfi.fr)>.
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