ARTIGOS

2021: uma odisseia brasileira

por Henrique Guelber

Vivo pensando em como tocar as pessoas sobre alguns absurdos que são ditos e repetidos Brasil afora. É lógico que o caminho para uma vida mais crítica e pensante se dá com leitura, educação e compartilhamento de experiências dentro de uma lógica democrática, em que se busca senso, contrassenso e síntese. Entretanto, fato é que sinto que a missão que eu descrevi para mim como fundamental em 2021 frustrou-se em boa medida. Sem querer parecer pessimista, vou aqui compartilhar uma retrospectiva de horror e de esperança.

Antes de qualquer outro ponto: nós não conhecemos nosso continente. E o ano de 2021 passou incólume a esta realidade. Não conhecemos nossos irmãos e continuamos a mirar nossos parâmetros comportamentais na Europa e nos Estados Unidos, o que se constitui da mais pura agressão histórica e cultural. Eduardo Galeano, em seu As Veias Abertas da América Latina, escreve que mesmo Colombo morreu ainda convencido de que havia alcançado a Ásia pelas costas. Tenho que o valor para os brasileiros da própria América Latina sempre andou de costas para o brio das nossas terras.

Muitos veem na América Latina um vasto império do Diabo, de redenção impossível ou duvidosa. É assim que a família Bolsonaro olha para nós, os latino americanos, como se eles não fossem. Buscam justificar o aniquilamento de pessoas, de suas infinitudes de sorrisos, como se vestissem as roupas de Juan Ginés de Sepúlveda, no clássico episódio A Controvérsia de Valladolid, um embrião da chamada Guerra Justa. Cometem-se atrocidades porque sentem-se autorizados pelos bons a fazê-lo. Uma dissonância plena, delirante, muito distante do ano de 1550.

Por falar no século XVI, entre 1501 e 1600, Étienne de La Boétie, aos 18 anos, buscou compreender por que tantas pessoas se submetem voluntariamente à tirania. Por que aceitar a miséria e a dominação? Como algumas pessoas se submetem a isso? Não há dúvidas de que muitas pessoas buscam justificar o que houve em 2018 (o voto), buscam um refúgio para a alma. A família do atual presidente chegou ao poder pelo medo, pelo protesto do que se formou a partir de 2013, muito deste protesto, então em criogenia, artificialmente criado por quem hoje concorre com o próprio Bolsonaro ao governo. Pois bem, se é possível chegar-se ao governo com base nestes sustentáculos, manter-se lá é outra história. Passa por uma servidão voluntária à família que matou incontáveis brasileiros durante a pandemia, com uma postura ridiculamente política, usando tapa-olhos que até hoje permanecem em seus olhos.   Passa por compactuar com e optar pelo significado dado ao diábolus, como aquele que desune, que separa, que segrega, que odeia. Estar ao lado de quem prega valores ofensivos à vida feliz é um ato maior do que a mera ignorância, é um ato cruel com as pessoas. Até que o colírio faça efeito, estas pessoas, presas numa repaginada Cegueira Moral de Bauman, contribuirão para uma nova tentativa de desgraça. Não há mais meios termos.

Por falar em Cegueira Moral, ainda em janeiro de 2021, iniciei um projeto chamado Debates, Construção Coletiva do Direito. O primeiro dos dez convidados foi Rubens Casara, e conversamos sobre Fascismo. Será que você sabe mesmo o que é Fascismo? O interesse desmedido na sexualidade alheia, a obstinada ignorância em negar a ciência, a violência ínsita nas manifestações de qualquer ordem, a incapacidade em debater, o menosprezo em relação às mulheres, a idiotice como o combustível unificador do mundo. Vejam que Ratzinger, num clássico debate com Habermas, questionou-o sobre O que une o mundo? Na oportunidade, Ratzinger chama a atenção para a incontestável dimensão da religião, e deixa claro que um debate racional secularista entonado de procedimentos democráticos são insuficientes para criarem um consenso apto a, de fato, unir o mundo. Ocorre que, na outra ponta, o Brasil, como o mundo em tempos outros, tem demonstrado que o ódio e a truculência podem também unir o mundo.

Filipe Ferreira, um jovem negro, a quem somente conheço pelas redes sociais mas já sinto enorme empatia, trouxe aos meus olhos e à minha vida um belo resumo das minhas indignações. Ao andar de bike, à luz do dia, vê contra ele destilado todo o racismo corporificado em nossas instituições de segurança pública. Tem a arma apontada contra si por ter feito absolutamente nada, ou melhor, por ter nascido preto. Segundo a Isto É, os casos de racismo, em 2021, dobraram em relação à 2019. Não se contabilizou 2020 por conta da pandemia.

Todo homem nascido nos anos 80, como eu, mas também nos anos 90, 70, e daí para baixo, é machista! Todo. Aquela história da desconstrução cotidiana do machismo é muito verdadeira. Há uma evidência muito forte das violências reais e simbólicas, como o mansplanning e o maninterrupting. Assim como a situação da homofobia e da transfobia. Ao olharmos para 2021, veremos uma mulher de Bauru que vociferou num restaurante da rede McDonalds por não haver banheiros separados estritamente por gênero. Fala como se o mundo pertencesse à sua arrogância e ao seu preconceito, e diz que irá cobrar providências para que sua fúria e seu ódio cheguem até a divisão daqueles banheiros.  “Banheiro multigênero aqui não!”.

Passeando pela incredulidade idiota do nosso tempo, a política levanta bandeiras novamente contra a vacinação, desta vez contra as crianças. Reafirmou seu nojo a respeito de índios, especialmente contra quilombolas. Destacou, sobretudo, que nossa Amazônia, por ser uma floresta úmida, não “pega fogo”, demonstrando mais uma vez sua órbita incompatível com a vida neste país.

Giorgio Agamben foi muito citado no ano, e é interessante nós destacarmos que o seu conceito de estado de exceção ganha novos contornos ao aprofundarmos o estudo de Foucault e, principalmente, de Mbembe. Se a obra do autor italiano traz sua principal interface com Karl Schmitt, parece-me que a convivência de estados de exceção com estados de Direito nunca foi tão conectada de maneira tão densa nas cidades brasileiras. As áreas pobres aperfeiçoam-se na constituição de modelos de estado de exceção, daquelas situações de anomia, ou melhor, da vergonha maior da formulação de nossos justitium tupiniquins, roubando a expressão do direito romano. A suspensão das garantias republicanas no Brasil possuem endereço certo. Lembremos da tentativa escriturada na ADPF 635.

Diante de tal realidade, Jacarezinho chocou-nos, mas caiu na rotina moedora da vida de pobres. Assim como mais recentemente Salgueiro nos chocou, e novamente parece ter perdido o interesse da “grande mídia”, que sempre deixa roucas instituições como a Defensoria Pública a gritar no meio de um show de rock outra música, distinta daquela cantada pelo Rockstar que leva facilmente as grandes massas. Assim ocorreu com o que arquitetaram nossas instituições responsáveis pela investigação no caso de Nova Brasília, que diante de uma, esta sim, cegueira deliberada, resolveram proteger os seus, resolveram dizer que o povo brasileiro das favelas não possuem boa relação com a polícia e que, por isso, sua palavra não deve ter crédito. Sim, isto, e aqui me vali de eufemismo, está escrito nas informações timbradas do Estado brasileiro à Comissão Interamericana de Direitos Humanos.

O ano de 2021 solidifica uma marcha altamente preocupante, e abre alas para o ano de 2022 de maneira bem hostil. Hostil porque as massas continuam a ser objeto de manobra simplificada das redes sociais, que hoje determinam as eleições no mundo, e tudo com muita participação de seus responsáveis. Instagram, Facebook, Twitter, Youtube e tantas outras, acreditam que podem controlar o asteroide, como no filme que marca o ano de 2021 e os anos recentes, Não Olhe Para Cima. Acham que o asteroide destruidor da vida humana pode gerar empregos e trazer riquezas. Mal sabem que eles são os próprios asteroides. Manipulação de massas para fins dilacerantes nas vidas de milhões de pessoas não é liberdade de expressão.

E no berço das instituições omissas, uma entrevista emblemática do PGR que descreve com clareza que não interfere naquilo que ele entende fazer parte da vida política. Ora, perguntamos: onde está a vida política se uma pessoa está disposta a falsificar o atestado de óbito da própria mãe para render-se a uma propaganda? A vida política é a vida do debate equivalente dos respectivos locais de fala, e isto não inclui a defesa apaixonada de torturadores, dos assassinos da arte e da cultura, dos negros usados politicamente por conta de sua cor da pele para presidir um dos grandes pedestais de nossa história, como o é a instituição Zumbi dos Palmares.

Ainda no campo das instituições, a Advocacia e a Defensoria Pública penam com uma série de retrocessos no campo penal e processual penal. Com uma estigmatização ainda maior do direito de defesa, hoje completamente espetacularizado, com cínicas decisões já tomadas, ignora-se o suor deixado nas tribunas de defesa. Defender é imoral, segundo quem acusa. É completamente pífio o discurso acusatório que dorme na cama da distorção probatória. Que inventa o que quer porque sabe que a “pressão popular” irá lhes atender. Acusadores que, pelos tribunais do júri do país afora, apontam os dedos para os jurados e, ao invés de mostrar-lhes consistência probatória, ameaçam-lhes com o risco da expiação pública.  Se autointitulam de Defensores da Sociedade, mas se lhes for perguntado o preço da picanha na comunidade, perguntarão se lá se vende picanha, tudo com naturalidade.

Agora, se nos perguntarem se há alguma saída, lembrando que ainda estamos em meio à pandemia, eu digo com muito otimismo que nossa saída está nas mãos de uma minoria que conseguirá, a partir de bravas lutas, irradiar seu efeito vital para seus pares. É através do diálogo paciente e inclusivo, por mais difícil que isso possa parecer. É através de ações de retomadas, que parem com a lógica de guerra. O período não é novo em nossa história…movimentos já ocorreram com a mesma força irradiadora agora esperada.

Tenho particularmente, em períodos recentes, criticado muito o estudo, por exemplo, dos Direitos Humanos na sua vertente acrítica, fofinha. A incapacidade de correlacionar dados históricos com a representação viva de nossa caminhada leva a um filme perturbador. O livro violentado pelas lanças na exposição de André Komatsu representa a mediocridade do nosso pensamento. A disfunção de tudo aquilo que gasta certa dose de tempo, impede a reflexão de qualquer assunto. E quando não somos mais capazes de refletir, perdemos por completo qualquer diferenciação nossa com os outros seres vivos do planeta. Ou melhor, tomando o exemplo dado na obra de Harari, nos diferenciaremos deles porque ainda saberemos como fofocar, ou seja, inventar, ou seja, produzir fake news, coisa que os outros animais não fazem.

No impactante livro de Isabel Wilkerson, Casta – As Origens de nosso mal-estar, (e tenho comigo também o clássico de Luis Dumont, que a confirma neste particular), vê-se que a desumanização é um componente indispensável na fabricação de um grupo externo contra o qual se lança um grupo interno, constitui uma tarefa fundamental. É uma guerra contra a verdade, contra o que os olhos veem e o coração sentiria se pudesse sentir por si só. Sim…Desumanizar outro ser humano é um processo de programação. E este processo é indispensável para se defender a necessidade da morte do inimigo, do seu sofrimento, do seu fuzilamento. É o que acontece entre nós. Numa coligação perfeita com Amartya Sen, vencedor do prêmio nobel de Economia, ao escrever sobre justiça e ser perguntado sobre o que significa, para ele, pobreza, ele responde: pobreza é a ausência de liberdade.

Pobreza é, de fato, a ausência de liberdade decorrente de um processo capitalista de desumanização, diria eu. É a junção do apoderamento do corpo e da força de trabalho dos pobres, rebaixados ao que, lá no Século XVI, Bartolomeu De Las Casas tentou lutar contra, ao defender que os índios também tinham alma e mereciam ser respeitados. É a ausência de liberdade de construir seus planos de vida, de crer que a vida para nossos filhos será melhor do que a que vivemos.

Os conceitos da vida mudam, se reestruturam, e sempre giram em torno de algum ganho que circula as vantagens para si, o que nada mais é do que a ausência de um espírito público, por isso mesmo, desinteressado em benefícios próprios.

Em 2021, o Judiciário fecha o ano em tons coorporativos ainda mais fortes, a corrida eleitoral se autoanuncia como a mais disputada e dura da nossa história, e em meio a tudo isso, gente que ainda pretende levar uma vida de gado e se alimentar fartamente enquanto caem moedas em seus porquinhos. O problema grave para estas pessoas se dará quando o porquinho não receber mais moedas. Não porque há de ser surpreendido com alguma crise, mas porque lhe subtrairão o próprio porco. Imaginem o desespero daquele que sempre contemplou o próprio porquinho.

Para todo mal, a conta chega. Os votos para 2022 são no sentido de alçarmos nossas vidas a um patamar de solidariedade, de menos estupidez, de maior equilíbrio, de maior amor ao próximo, longe das tragédias que sempre e invariavelmente nos rondam. Mas apenas um lembrete: para não repetirmos nossas tragédias, precisamos olhá-las bem no olho, não envergonhados ou descrentes de sua repetição. Muito mais tímido, é o que consigo prever para 2022, como o fez em relação à tecnologia e à ciência Stanley Kubrick, com a ressalva de que, sim, tudo pode se repetir, e vida de progresso noticiada para 2001, em 1968, pode simplesmente retornar para 1933, vinte anos depois.   

HENRIQUE GUELBER é doutorando em Sociologia e Direito na UFF, mestre em Direito Processual pela UERJ e defensor público no estado do Rio de Janeiro

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1 resposta »

  1. Muito boa caracterização do momento político atual em que vivemos. Um momento bastante atípico e banalizado pelo retrocesso em âmbito político, econômico, científico, ambientale, social e por que não, até mesmo no campo jurídico. Ou seja, na medida em que quem acusa e quem julga combinam-se para um resultado comum, de modo a atender aos próprios interesses pessoas e assim tirarem proveitos políticos. O artigo nos chama para a reflexão e uma tomada de decisão para sermos protagonistas nas próximas eleições partidárias e gerais. Afinal, está nas nossas mãos e não podemos ficar inertes nesse momento crucial (de mudança de poder) da vida política do nosso país. Enfim, foi isso que entendi lendo o artigo na íntegra. É claro que não foi preciso abordar cada item explorado pelo autor. Grato, Abdon da Costa Sousa.

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